terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Biografia de Paulo Monteiro



Velho gaúcho – Insaciável
De fazer aos mandões guerra,
Nestas páginas encerra
Por um pendor invencível –
Seu amor – Incorrigível
Às tradições desta Terra.
AMARRO JUVENAL (Ramiro Barcellos),
in Antônio Chimango.

Paulo Monteiro, cujo nome civil é Paulo Domingos da Silva Monteiro, filho de Pedro Mendes Monteiro e Leocrécia da Silva Monteiro, nasceu em Passo Fundo, no dia 26 de setembro de 1954, na localidade de Santo Antão. Seu pai, funcionário do DAER – Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem – foi transferido para Ernestina, onde morou durante alguns meses. Em 1956 fixou residência na Vila Jerônimo Coelho, sendo o primeiro morador daquele núcleo urbano.
Paulo iniciou seus estudos na então Escola Parque e Grêmio dos Viajantes (hoje Escola Municipal Pe. José de Anchieta), de onde saiu na quarta-série do Curso primário, revoltado com os castigos físicos e psicológicos então impostos aos alunos, continuando seus estudos na Escola Municipal Cardeal Leme, em Santo Antão.
Concluído o Ensino Primário cursou a 1a. série do Curso Ginasial no Grupo Escolar Joaquim Fagundes dos Reis (em extensão do Colégio Estadual Nicolau de Araújo Vergueiro). Ali se destacou escrevendo poemas para o jornal Fagundes em Foco, organizados pelas professoras de Língua Portuguesa, com trabalhos dos alunos. Logo a seguir seus trabalhos começaram a ser publicado nos jornais da cidade.
A divulgação de seus poemas despertou a atenção de outros jovens escritores, com os quais se integrou, fundando em 29 de julho de 1971, o Grupo Literário “Nova Geração”, que manteve intensa atividade cultural, através de publicações em O Nacional e Diário da Manhã, manutenção de programas de rádio, e a edição da revista Presença, daquele grupo de jovens escritores.
Já estudando na hoje Escola Estadual Nicolau de Araújo Vergueiro, na Praça Tamandaré, Paulo Monteiro passou a fazer parte do movimento estudantil junto ao Centro Cívico e ao Grêmio Estudantil, do qual foi presidente. Ligado à oposição à Ditadura Militar, em 1973, foi um dos fundadores da Juventude do extinto Movimento Democrático Brasileiro (MDB), sendo um dos seus líderes a nível municipal, e fazendo parte do diretório estadual daquela organização partidária. Ao mesmo tempo exercia militância clandestina no Partido Comunista Brasileiro – PCB –, do qual se afastou por divergências ideológicas, em meados de 1975.
Teve intensa participação em todas os pleitos eleitorais a partir de 1972, e concorreu a vereador nas eleições de 1976, realizando uma campanha de oposição intransigente ao regime militar, que lhe valeu sérias advertências de líderes emedebistas, especialmente por pronunciamentos onde denunciava as violações dos direitos humanos e clamava pela anistia e o retorno dos exilados, máxime João Goulart e Leonel Brizola.
Em 1977 ingressou na Prefeitura de Passo Fundo, indo trabalhar no setor de Cadastro da Secretaria Municipal da Fazenda. No ano seguinte foi um dos responsáveis pelo lançamento da campanha de Éden Pedroso, à Assembléia Legislativa, sendo um dos responsáveis pela coordenação de sua campanha, em Passo Fundo. Éden obteve expressiva votação e acabou aglutinando o grupo que serviria de base ao futuro Partido Democrático Trabalhista.
Continuando em sua militância política, como presidente da Juventude do MDB, foi um dos articuladores do movimento pela reorganização do trabalhismo. Com a perda da sigla para Ivete Vargas contribuiu para a criação do PDT – Partido Democrático Trabalhista. Tendo sido convidado para ingressar no MDB, inclusive com promessa de um alto cargo na Secretaria Municipal de Obras e Viação, que não aceitou, acabou sendo demitido, em dezembro de 1981, fato que teve intensa repercussão, inclusive com matéria de capa no Diário da Manhã.
Logo a seguir ingressou como assessor da bancada do PDT na Câmara de Vereadores, onde continuou sua militância, empenhando esforços na organização de associações de moradores e outras entidades da sociedade civil. Foi, ainda, o principal idealizador do Curso Libertação, da Juventude Socialista do PTD, arregimentando professores que lecionavam gratuitamente contribuindo para a continuidade dos estudos de mais de seiscentos passo-fundenses. Em 1982 foi um dos coordenadores da primeira campanha eleitoral do PDT, em Passo Fundo, quando Rudah Jorge concorreu a prefeito.
Em 1986 liderou o movimento que culminou com a fundação da UAMPAF – União das Associações de Moradores de Passo Fundo -, em 24 de maio daquele ano, sendo eleito seu secretário-geral para o biênio 1986/l988. Posteriormente foi eleito presidente da UAMPAF, sendo reconduzido por mais duas vezes, exercendo a presidência até meados de 1993.
Como presidente da UAMPAF liderou movimentos que culminaram com a redução do preço das passagens dos coletivos urbanos, concomitantemente com a melhoria da frota. Apoiou a manutenção da Empresa Municipal de Transportes Urbanos, criada no governo Dipp/Salton, quando, em seu primeiro governo, Osvaldo Gomes tentou fechá-la. Comandou mobilizações que garantiram a ocupação da atual Vila Alvorada e da Beira-Trilhos; organizou, com o apoio da administração municipal, as comunidades que construíram os Postos Policiais Militares (Santa Marta, Edmundo Trein, Nenê Graeff, São José e Victor Issler). Contribuiu para a criação da Escola da Vila Cruzeiro. Liderou manifestações contra o fim do Programa Nacional do Leite Gratuito e incentivou comunidades a enfrentarem, inclusive com ações judiciais, a poluição urbana. Participou ativamente de colegiados representativos, como o CONDEPRO – Conselho de Desenvolvimento da Região da Produção –, do qual foi um dos primeiros integrantes.
Formou ao lado das lideranças políticas que apoiaram o engenheiro passo-fundense Fúlvio Petracco ao governo do Estado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1986, sendo um dos coordenadores de sua campanha, em Passo Fundo.
Nas eleições municipais de 1988 ajudou a dobradinha Airton Dipp/Carlos Armando Salton, sendo convidado para a CAB – Coordenação das Associações de Bairros, aproveitando para consolidar o movimento comunitário. Ao mesmo tempo em que exercia suas funções na Prefeitura, liderava as associações de moradores locais e participava do movimento comunitário a nível estadual e nacional, chegando a presidente do Conselho Fiscal da FRACAB – Federação Rio-Grandense das Associações Comunitárias e de Amigos de Bairros, e conselheiro da CONAM – Confederação Nacional das Associações de Moradores. Presidiu os quatro Congressos Municipais promovidos pela UAMPAF, o último dos quais em 2003.
Em 1992 concorreu a vereador pelo Partido Democrático Trabalhista obtendo 640 votos, mesmo dispondo de parcos recursos e sua candidatura lançada de última hora, ao verificar que a maioria dos assessores da administração Dipp/Salton optava por ficarem nos cargos até o final do governo.
Posteriormente, ingressou no PSB – Partido Socialista Brasileiro, participando ativamente de todas as campanhas eleitorais do partido. Em princípios de 2003, afastou-se de qualquer militância partidária, indignado com o oportunismo, a venalidade e a corrupção que tomou conta do atual modelo político brasileiro.
Funcionário público estadual concursado, atualmente exercendo suas funções na secretaria da Escola Estadual de Ensino Fundamental Professora Lucille Fragoso de Albuquerque, na Vila Hípica. Foi um dos fundadores do SINFERS – Sindicato dos Funcionários das Escolas Públicas Estaduais –, sediado em Porto Alegre, do qual foi vice-presidente e conselheiro. Descontente com a política oportunista daquele sindicato, atualmente, participa de todas as mobilizações e atividades, a nível local e estadual do CEPRS – Sindicato.
Desde 1971 exerce intensa atividade cultural, inicialmente como membro e dirigente do Grupo Literário “Nova Geração”. Na década de 1980 editou o periódico literário “Quero-Quero”, que era enviado para 500 escritores de todo o País. É autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas históricos, culturais e literários, divulgados e jornais e revistas e em diversos sítios da Internet.
Em 30 de dezembro de 2008 tomou posse na presidência da Academia Passo-Fundense de Letras, que já vinha exercendo diante da renúncia do antigo presidente. Implantou uma política de abertura da mais antiga instituição cultural passo-fundense à comunidade. Passou a divulgar as atividades do sodalício, a realizar prestações de contas. Efetuou uma profunda reforma estatutária, restabelecendo a confiabilidade na Academia, depois de longos anos de isolamento comunitário. No próximo dia 23 de fevereiro de 2010 transmitirá o cargo à presidente eleita, escritora Elisabeth Souza Ferreira, atual primeira secretária.
Atualmente, por decisão unânime dos demais confrades, produz e apresenta o programa Literatura Local, na TV Câmara (Canal 16, da NET), numa parceria firmada entre a Câmara de Vereadores de Passo Fundo e a Academia Passo-Fundense de Letras, divulgando autores do município e região.
Esse ativismo cultural fez com que fosse convidado a integrar os quadros das seguintes entidades culturais brasileiras e internacionais:

* International Academy Of Leters Of England (Londres);

* Academia de Trovas do Rio Grande do Norte (Natal);

* Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana (RS);

* Academia de Letras de Uruguaiana (RS);

* Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel (Salvador, BA);

* Academia Anapolina de Filosofia, Ciências e Letras (Anápolis, GO);

* Clube dos Trovadores Capixabas (Vila Velha, ES);

* Clube Internacional de Boa Leitura (Uruguaiana, RS);

* Clube de Poesia de Uruguaiana (RS);

* Federação Brasileira das Entidades Trovistas (Rio de Janeiro, RJ);

* Academia Petropolitana de Letras (Petrópolis, RJ);
* Academia Literária Gaúcha (Porto Alegre);

* Academia Passo-Fundense de Letras (Passo Fundo);

* Academia Sorocabana de Letras (Sorocaba, SP);

* Poetas del Mundo (Santiago, Chile)

* Academia de Artes, Ciências e Letras Castro Alves (Porto Alegre, RS);

* AVSP – Academia Virtual – Sala dos Poetas e Escritores (Camboriú, SC);

Pertenceu, ainda, às seguintes entidades:

* Grupo Literário “Nova Geração” (Passo Fundo);

* Associação Gaúcha de Escritores (Porto Alegre);

* União Brasileira de Trovadores (Rio de Janeiro, RJ).

Trabalhou na redação do Jornal da Tarde, Diário da Manhã, O Cidadão (Redator Chefe) e Jornal Rotta/Jornal Cidade, de Passo Fundo, e Rádio Aliança, de Concórdia, SC. Atualmente, é um dos editores da Revista Água da Fonte, da Academia Passo-Fundense de Letras.
Em 1982 publicou, em edição de bibliófilo, o livro A Trova no Espírito Santo – História e Antologia. Escreveu centenas de artigos e ensaios inseridos em jornais, revistas e livros. Em 2006 deu a lume pela Editora Berthier, de Passo Fundo, o livro Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo, que o consagrou como um dos maiores conhecedores da fatídica “Revolução da Degola”.
Cristão praticante foi consagrado Evangelista na Casa de Oração de Passo Fundo, no dia 20 de setembro de 1996, com a presença de autoridades religiosas e civis.
Casado com Maria Nelci Machado Monteiro, também funcionária pública estadual concursada, o casal tem cinco filhas: Cris Daniele (28 anos, advogada formada pela Universidade de Passo Fundo). Nadejda Aparecida (22 anos, licenciada em Física pela Universidade de Passo Fundo), Rozalia Natália (20 anos, acadêmica de Psicologia Universidade Estácio de Sá, Campus de São José, Santa Catarina), Paula Tatsuia (18 anos, cursando Tecnólogo em Sistemas para Internet, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Teconologia Sul-Rio-Grandense, Campus de Passo Fundo) e Sara Adalía (12 anos, freqüentando a 8a. série do Ensino Fundamental, na EENAV). (Atualizada em 5 de janeiro de 2010).

JUCA RUIVO




AO AMIGO HILTON LUIZ ARALDI, PARCEIRO DE ESTUDOS GAUCHESCOS

Paulo Monteiro

Certa feita, perguntei ao poeta passo-fundense Vasco Mello Leiria, Capitão Caraguatá, sobre Juca Ruivo. Recebi como resposta um lacônico:
– “Era um tipo estranho que vivia pelos fundos das fazendas medindo terras...”
A afirmação do velho conterrâneo martelou minha cabeça durante três décadas. A explicação para a hermética resposta somente encontrei após ler “Tradição”, o único livro de Juca Ruivo, cuja primeira edição foi publicada em 1957, pela Editora Globo, de Porto Alegre, sob o patrocínio do Centro de Tradições Gaúchas Minuano, de Iraí. Em 1985 saiu a segunda edição, graças aos esforços dos tradicionalistas Juarês Luís Gaspari e Alcides André Moraes, com um prefácio crítico-biográfico de José Alberto Barbosa e três novos poemas: “As Últimas Vontades” (1966); “Últimos Poemas” (1969) e “Tavico” (1972). Em 2002, José Isaac Pilatti e José Alberto Barbosa, que revisou e organizou a biografia e a bibliografia, lançaram, em Santa Catarina, a terceira edição do livro. A quarta edição, organizada por José Isaac Pilati, com a colaboração de José Alberto Barbosa e João Batista Marçal, saiu em 2004, sob o selo da Fundação José Arthur Boiteaux, de Florianópolis, Estado de Santa Catarina.
Lendo e relendo a quarta edição do único livro de Juca Ruivo, encontrei a resposta para o laconismo de Vasco Mello Leiria, conhecido oficial da Brigada Militar: a participação do poeta quaraiense, sob o comando do general libertador Honório Lemes, na Revolução de 23; seu envolvimento em tentativas revolucionárias posteriores e, mais tarde, conforme testemunho de Hugo Ramírez, idealizador da Estância da Poesia Crioula, sua militância ou simpatia com o Partido Comunista Brasileiro – PCB.

1. A Infância

Juca Ruivo nasceu José da Silva Leal Filho, em Garupá, de onde se avista o famoso Morro do Jarau, em Quaraí, no dia 22 de fevereiro de 1902. Seu pai, José da Silva Leal, são-gabrielense, era escrivão em Quaraí, depois gerente de banco no Alegrete e proprietário rural no Caverá. Sua mãe, Adolphina Schmiht Leal, era alegretense. Diz-se que Juca Ruivo foi registrado no Alegrete. O poeta contava que nasceu em 29 de fevereiro de 2004 e que o avô paterno, supersticioso, fez alterar a data de nascimento para coincidir com o aniversário de George Washington e evitar a coincidência do ano bissexto. Entretanto, segundo certidão de batismo obtida pelo biógrafo José Alberto Barbosa, o poeta nasceu, de fato, em 1902. Desde pequeno recebeu o apelido de Juca Ruivo porque tinha cabelos castanhos-claros.
Seus pais eram maragatos, adeptos do Partido Federalista, que liderou a Revolução de 93. Seguramente, cresceu ouvindo a famosa máxima de Gaspar da Silveira Martins: “Idéias não são metais que se fundem”. Daí que, aos 21 anos, tudo abandona para inscrever-se nas tropas de Honório Lemes, cognominado “Leão do Caverá”, sob cujas ordens serviu no posto de tenente. As idéias radicais sob as quais o poeta se formou, são lembradas no poema intitulado “A Esperança”:
Quando chegar esse tempo,
pelos galpões das estâncias,
se ouvirão as ressonâncias
das cordeonas melodiosas.
Nas ramadas silenciosas,
reviverão as porfias.
No balcão das pulperias,
haverá canha bem pura
pra afogar as amarguras
e saudar as alegrias!

O guasca terá de novo
seus redomões e tropilhas.
Pelo topo das coxilhas
o gado pastará em pontas.
Ninguém mais andará às tontas
fugindo da autoridade.
E em vez da calamidade
desta vida de carancho,
cada um terá seu rancho
e plata e carne à vontade!

E quando o poncho dos pobres
luzir pelo céu bendito,
por todo o pampa infinito
haverá frescas ramadas,
pra se dormir as sesteadas
nos mormaços de verão.
Haverá em cada galpão,
um fogo reconfortante,
pra aquentar o pobre andante
tocada pelo Minuano.
Enfim, o livre paisano,
será rei do seu rincão!

E correrão nos domingos,
as califórnias antigas.
As chinas que nem formigas,
arrodearão as carpetas.
Os milicianos paletas,
não bulirão com ninguém;
o guasca terá também
seu direito respeitado
que a Lei cortará num lado
e não bombeará em quem!

E do trabalho nas fainas,
o crioulo todo entregue,
viverá contente, alegre,
entre morenas quartudas.
Haverá tropas morrudas,
em que ganhe o suficiente
pra se vestir como gente
e dar regalos à china,
e nalguma sina-sina,
dar a casca, finalmente.

Contudo, embora nos reste,
baixo a cinza, indiferente,
alguma brasa inda quente
do entusiasmo passado,
o progresso respeitado,
não matará essa ilusão...
E ao toque de oração,
se ouvirão vozes no campo,
brilharão luzes no escampo
e viverá a TRADIÇÃO!

“A Esperança” repercute algumas características marcantes da gauchesca: o sonho do paraíso perdido; o eterno retorno; o poema assume uma linguagem quase que escatológica, uma espécie de literatura apocalíptica: um dia os gaúchos viverão “à la farta” e “à la solta”, num éden alcançado graças à tradição. O futuro ideal é um retorno ao passado perdido dos gaudérios. É uma estranha maneira de revolver a terra (revolucionar, segundo a melhor etimologia latina) para plantar uma nova cultura (sociedade), através de um retorno ao passado. Talvez essa seja a mesma idéia básica do socialismo científico, a construção de uma sociedade sem classes que somente existiu nas sociedades mais ancestrais, através do chamado comunismo primitivo.
Os primeiros estudos devem ter sido feitos no Alegrete, ainda que não havendo registros sobre os mesmos, pois era ali que a família residia. E, provavelmente, no Colégio de Dona Mimí (Zulmira Barreto Contino), onde estudavam os filhos das famílias com maiores recursos. Depois passou para a escola do português Antônio Cabral Beirão. O Curso Ginasial também não se sabe onde o teria iniciado. Segundo o próprio poeta conta em “Quando eu Volver”, saiu de casa aos 12 anos, chorando porque foi morar fora do Alegrete. Isso deve ter ocorrido entre 1913 e 1914. Certo é que no ano de 1917 já estava em Porto Alegre curando o que hoje denominamos de Ensino Médio. Era para a Capital que as famílias abastadas do interior mandavam seus filhos prepararem-se para um curso superior ou a carreira de oficial do Exército.
A vida estudantil dos jovens interioranos na Porto Alegre das primeiras décadas do Século XX é amplamente conhecida pelas memórias que nos deixaram muitos contemporâneos. Era um mundo de serenatas, boemia e liberalidade sexual, onde os donos do poder estadual, personificados na pessoa de Antonio Augusto Borges de Medeiros, procuravam cooptar jovens representantes da elite interiorana. Mesmo formado sob a férrea ideologia federalista, Juca Ruivo chegou a participar de serenatas em homenagem à esposa do odiado Antônio Chimango.

2. A Juventude

Os dados biográficos coligidos por José Isaac Pilati, José Alberto Barbosa e João Batista Marçal não alcançam a precisão dos fatos cabalmente documentados sobre a vida do poeta. As informações disponíveis sobre sua carreira estudantil são inseguras, tanto quanto os dados relativos aos anos juvenis de João Simões Lopes Neto e de diversas outras personalidades da história literária e cultural do Rio Grande do Sul. Muitas dessas informações acabam se revelando falsas, de uma falsidade biográfica espalhada por aquelas mesmas personalidades.
Em 1920, Juca Ruivo ingressa no Curso Superior de Engenharia, na Capital do Estado. Ali conviveu com muitos intelectuais que se destacariam na vida literária do Rio Grande do Sul.
Maria Eunice Moreira no seu livro “Regionalismo e Literatura no Rio Grande do Sul” (Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes/Instituto Cultural Português, 1982) mostra que o fim do Século XIX e as primeiras décadas do Século XX marcaram um período de decadência da velha economia pastoril. “Com efeito – escreve à página 22, lembrando o clássico “Estudos Rio-Grandenses”, de Rubens de Barcellos) –, o Rio Grande do Sul, cuja base econômica se mantinha ligada à exploração do gado, não mais retomou as suas bases de economia nitidamente pastoril. Ao contrário, a economia gaúcha passou a se sustentar em função eminentemente agrícola. Pode-se mesmo afirmar, com o autor rio-grandense, que houve uma transformação de povo pastor para povo agrícola (BARCELLOS, 1960:30), sem que esta alcançasse a projeção da primeira.”
O descontentamento da elite estancieira foi muito grande, descontentamento que se manifestaria de forma radical através da Revolução de 23. O regionalismo literário, a gauchesca em prosa e verso, que irrompe nesse período é o canto de cisne de uma sociedade que exala seu último suspiro sob o imperialismo que investe e domina a campanha rio-grandense.
Nos dois anos que antecederam a Revolução de 23, o poeta se destaca entre os participantes das reuniões do Partido Federalista, transformado em Partido Libertador, com a adesão de dissidentes republicanos liderados por Joaquim Francisco de Assis Brasil. Declama exaltando o lenço colorado, os ideais e os símbolos gasparistas, com sua fama expandindo-se através do Rio Grande.
Rebentada a Revolução Libertadora, Juca Ruivo abandona os estudos de Engenharia, apresentando-se ao “Leão do Caverá”, que registra em Ordem do Dia sobre a participação do poeta no Combate da Ponte do Ibirapuitã: “o jovem estudante de Engenharia, tenente José Leal, cujo denodo e valentia davam-lhe a feição de um herói cartaginês das hostes de Aníbal”. Acompanhava-no um negro de nome Malaquias Conceição, homem de confiança do pai e do avô do poeta, que seria seu companheiro inseparável. O combate, travado no dia 19 de junho de 1923, envolveu cerca de 3 mil homens, de forças numericamente muito parecidas. As partes oficiais governistas contabilizaram, entre os seus, dez mortos e quarenta e um feridos; entre os revolucionários registraram 22 mortos e um sem número de feridos. Antonio Augusto Fagundes dedicou um livro ao assunto (“COMBATE DA PONTE DO IBIRAPUITÔ, Porto Alegre, Martins Livreiro, 1982).
Nesse combate o poeta foi ferido, sendo socorrido pelo tenente Anísio Paim da Rocha, que lhe deu um cantil com água. Guardou consigo o cantil. Heitor Lothieu Angeli contaria em seu livro “Crônicas do Oeste – História de Pioneiros” (Foz do Iguaçu, Edição do Autor, 1998) o encontro entre o autor de “Tradição” e seu salvador, cerca de trinta anos depois, no Hotel Sander, de Chapecó, oportunidade em que o poeta devolveu ao bem-feitor o cantil cuidadosamente guardado durante décadas. Descobrira o nome do ajudante de ordens, que procurara encontrar durante anos. A partir daquele momento Juca Ruivo e o filho do general palmeirense Leonel Rocha tornaram-se amigos e companheiros de trabalho inseparáveis.
Mesmo seqüelado, uma semana depois, em 26 de junho, participava do Combate do Mandiju. Aí , ferido no pescoço, o coronel libertador Aníbal Padão, pediu que o deixassem morrer a cavalo. E assim o fizeram. Juca Ruivo, de um lado, e um ordenança de ordens, do outro, seguraram o comandante até que exalasse o último suspiro. Seu sepultamento, em São Borja, uniu os adversários, numa última homenagem.
Juca Ruivo também participou do Combate de Ponche Verde (3 de setembro de 1923), onde se envolveram dois poetas uruguaianenses: o libertador João Gonçalves Vianna Filho (3 de outubro de 1890 – 11 de abril de 1934), que usava o pseudônimo de Xiru Velho e publicou o livro de versos “Tebaída”, em 1923, conforme conta Pedro Leite Villas-Bôas em seu clássico “NOTAS DE BIBLIOGRAFIA SUL-RIO-GRANDES – AUTORES” (Porto Alegre, A Nação/Instituto Estadual do Livro, 1974) e o chimango Alceu de Freitas Wamosy (14 de fevereiro de 1895 – 13 de setembro de 1923). Antônio Carlos Machado, profundo conhecedor da formação histórica e da poesia sul-rio-grandenses, dedicou-lhe duas encomiásticas biografias: “Estudo sobre Alcêu Vámosi” (Rio de Janeiro, sem editor, 1943) e “NASCUNTUR POETAE” (Rio de Janeiro, Gráfica Marabá, 1944). O autor do conhecidíssimo soneto “Duas Almas”, ferido nesse combate, morreria dez dias depois, não sem antes casar, “in extremis”, com a noiva que lhe inspirou tantos e tão conhecidos versos.
Em Ponche Verde ocorreu mais uma degola de prisioneiros. Os libertadores retribuíram com a mesma moeda o que mercenários uruguaios fizeram com os prisioneiros depois do Combate da Ponte do Ibirapuitã. Mandavam que os prisioneiros pronunciassem a expressão “dois pauzinhos”. Quando o prisioneiro pronunciava “dos pauzitos” ou “dos paulitos” era, de pronto degolado. Conta-se que não sobrou um oriental para contar a história
Os degoladores foram implacáveis. Conta-se que um priosioneiro implorou:
“– Pela leche de tu madre, non me mates!”
Recebeu a resposta fulminante:
“– Fui criado guacho, hijo de uma perra!”
E, sem clemência alguma, aplicou um indignado corte de orelha a orelha, no pescoço do desgraçado mercenário.
Conta-se, ainda, que os algozes libertaram seus compatriotas com a ordem de que comunicassem aos seus comandantes que a partir daquele momento todos os estrangeiros aprisionados seriam condecorados com a humilhante “gravata colorada”.
Juca Ruivo media as palavras ao falar dessa prática infame e infamante das guerras gaúchas. E negava qualquer participação nesses atos sangrentos.
Logo depois de Ponche Verde atravessou o Rio Quaraí, onde se encontrou com o poeta hispano-uruguaio José Alonso y Trelles (1857-1924), conhecido pelo pseudônimo de “El Viejo Pancho”. Seu livro “Paja Brava”, de 1915, é um dos marcos maiores da renovação da poesia gauchesca. No Uruguai, Juca Ruivo e Malaquias Conceição sobrevivem como esquiladores (tosadores de ovelhas). Algum tempo depois, empregam-se no porto de Montevidéu, onde Batista Lusardo, chefe do estado maior da Coluna Honório Lemes, os reconhece e acolhe, nascendo uma grande amizade entre o poeta e o tribuno libertador.
A 29 de outubro de 1924, Honório Lemes levanta seus combatentes, em apoio à sublevação paulista. Juca Ruivo e seu fiel companheiro voltam ao Rio Grande. No posto de capitão, é ferido no Combate de Guaçu-Boi, no Alegrete, travado a 9 de novembro. O ferimento na perna o torturaria durante longos anos, até ser curado na década de 1950, graças à penicilina e às receitas do poeta e médico Aureliano de Figueiredo Pinto, que costumava visitá-lo em Iraí. O poeta e advogado João Octávio Nogueira Leiria, o Tavico, participava desses encontros.
Depois do Combate de Passo das Carretas, em 8 de dezembro, quando Honório Lemes é derrotado, Juca Ruivo refugia-se na Argentina porque os libertadores não eram bem aceitos no Uruguai.
No ano seguinte ocorre nova ação revolucionária, em que Honório Lemes é preso e a seguir anistiado por Flores da Cunha. O general libertador, que faleceria em 1930, abandou em definitivo as aventuras revolucionárias.
Em 2 de fevereiro de 1926, com o nome de José da Silva Leal, o poeta foi nomeado Escriturário de 2ª Classe da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, com vencimentos de 400$000 mensais. Participou, nesse mesmo ano, de nova avançada revolucionária, que duraria de 16 de novembro até 2 de janeiro de 1927. No ano seguinte esteve em São Paulo. É provável que continuasse seus estudos de Engenharia. O poeta disse ao biógrafo José Alberto Barbosa que era engenheiro formado pelo Mackenzie College.
Em 1928, em Montevidéu, o escultor José Belloni funde o monumento “La Carreta”, inaugurado dois anos depois, acolhendo passagens de diversos poetas. Talvez por influência de seu amigo Batista Lusardo, embaixador brasileiro na capital uruguaia, Juca Ruivo era um dos poetas ali homenageados.
O poeta cantou num poema justamente famoso o velho meio de transporte típico da campanha gaúcha.

CARRETA

Como adeus em despedida,
vai-se a tarde, tristemente.
Pelas bandas do poente
um sol de seca esmaece.
Há como um rumor de prece
nas gargantas emplumadas.
Cessa a vida nas estradas,
nas grotas e nas coxilhas
onde as últimas tropilhas
campeiam seu parador.

Na volta do corredor
surge uma quadrilha a trote;
na culatra, um piazote,
gineteia num tostado
chupando o beiço, apurado,
para chegar convidando...
Um tordilho retouçando
e dois baios seguidores
fazem festa, anunciadores
da acolhedora querência.

Pena tudo na inclemência
do castigo das pastagens.
Não há frescor nas aragens
que sopram de quando em vez.
Sequiosa chega uma rês
na lagoa chapinhada
onde garça ensimesmada,
encolhida na tristeza,
memoreia com certeza
saudades doutras paragens...

Varre o “Norte” poeirento
horizontes em fumaça.
Uma carreta que passa
rompe a calma do instante.
Vão dois tambeiros por diante
repinicando o balado.
O chiru velho a cavalo
vai abanando a picanha,
– enquanto o coice acompanha
da “ponta”, volta por volta.

Em fios a baba se solta
das quartas xucras da canga.
Os quero-queros na sanga
contam logo a novidade!
Tão raro na atualidade,
é o cruzar duma carreta
que esse pássaro xereta,
do vulto estranho se assombra!

Do guaipeca, que na sombra
da mesa, marcha assoleado;
do corote pendurado,
da trempe que junto vem;

Do resmuguento nhem... nhem...
da buzina de aguaí
e da petiça ñambi,
de tiro no recavem.

O couro bate na porta.
Vai o muchacho de arrasto
deixando atrás o seu rasto
rabiscando em linha torta;

Mas, na estrada poeirenta
terá o rasto curta vida,
porque o vento é de tormenta
e mui pronto o apagará.
*
**

A noite pampa se acerca.
Desperta em sons a planura,
seu concerto de abertura
afinando em notas claras.
Zune o vento nas taquaras
arrematando a algazarra
qu’inda faz uma cigarra,
cargosa de se calar.

Então, – me fico a pensar
que o velho traste pampiano,
do seu destino haragano,
já vai tocando no termo.
E que ao cruzar pelo ermo,
engolindo as léguas largas
das estradas do rincão,
carrega as últimas cargas
da Gaúcha Tradição!
*
**

Velha relíquia do pago
já hoje por imprestável,
no rol das coisas proscritas.
Recordas quando transitas
na tua lenta passagem
um passado memorável
de luta, glória e nobreza!

E ao relembrar que a paisagem
tu deixarás de animar,
acampando a tua pobreza
em pousos à beira d’água,
eu sinto uma grande mágoa
e um profundo pesar!

Carreta! És igual a mim
que também já chego ao fim,
gaudério, sempre a cruzar...
Alma velha em corpo gasto,
da vida pelos rincões
vou cruzando sem um rasto,
carregado de ilusões.
*
**
Lagoa da Derrota
Campos de Ituzaingo

Não se sabe ao certo a data em que Juca Ruivo escreveu o poema. Entretanto, o Autor ainda era jovem. Os estudiosos da gauchesca em Língua Portuguesa concordam que ela é um produto do Romantismo. E a última estrofe transpira ao Ultra-romantismo, para ser mais preciso ao chamado “mal do século”, quanto poetas mal saídos da adolescência morriam tuberculosos e viam nisso uma grande coisa.
À “Carreta” aplica-se o que Maria Eunice Moreira escreveu sobre a prosa regionalista gaúcha: “A maior parte dos textos funciona como cenas estáticas ao leitor. Mais parecem fotografias, clichês, do que propriamente contos. Desde uma primeira leitura ressalta a correspondência texto-fotografia”. Noutra passagem a pesquisadora afirma que, dentro da caracterização passado/presente “A paisagem é o foco para onde o leitor deve olhar fixamente. Dá-se, então, uma descaracterização do objeto enquanto tal, que se torna signo de um tempo que se deseja perpetuar”. E conclui lembrando a “personificação da paisagem”
Vemos, no poema, que a carreta é o próprio poeta; o quero-quero é “xereta”; os quero-queros contam novidades; os pássaros (“gargantas emplumadas”) oram, e uma garça, triste, ensimesmada, lembra saudosa de outras paragens. É a “personificação da paisagem” de que fala a autora de “Regionalismo e Literatura no Rio Grande do Sul”.
Juca Ruivo, a exemplo de tantos outros veteranos da Revolução de 23 e da Revolução de 93, contribui com sua experiência de guerra à gaúcha para a Revolução de 30. Nesta, no Combate de Quatinguá, que o poeta chamaria de “floreio”, morreu seu fiel companheiro Malaquias Conceição, o “Negro Malaquias”. Durante anos, trabalhou num poema, que ficou inconcluso, dedicado ao sempre saudoso amigo. João Octávio Nogueira Leiria transcreveu algumas estrofes no prefácio que escreveu para a primeira edição do livro de Juca Ruivo. Ei-las:
Malaquias deu o cacho,
num floreio em Quatinguá;
ali sepultado está,
crucificado a balaços.
Ao expirar nos meus braços,
em meio à garoa fina,
olhou-me de relancina
e se finou sem um grito,
aiando mui despacito:
“pobre china... pobre china..”

E lá ficou, numa grota,
esse moreno valente,
que foi gaúcho experiente
e amigo na desventura.
Cravei-lhe na sepultura
uma cruz meio matada,
aonde quedou gravada,
à faca, sua filiação.
À gente do seu rincão
rogo um terço por su’alma.

E assim morreu esse negro,
que só foi negro na cor,
pois tinha brio e valor
para dar a muito branco...
Tombou no primeiro arranco
duma carga meritória;
no remate desta história,
pela pena que me invade,
aqui deixo uma saudade
plantada em sua memória.

Em 1932, Juca Ruivo participa da Revolução Constitucionalista, combatendo antigos companheiros de colégio que se opunham a Getúlio Vargas. Permanece algum tempo na paulicéia, onde faz amizade com Monteiro Lobato. Ali escreve o poema “Umbu de Tapera”, que é enviado para publicação no Diário de Notícias da Capital Gaúcha.

3. A Maturidade

A ditadura varguista, implantada pouco depois, com censura à imprensa e prisão de intelectuais, deve ter contribuído para que Juca Ruivo nutrisse um grande ódio por Getúlio Vargas. Tanto que, certa feita, em que José Alberto Barbosa tocou no nome do ditador foi interrompido com um sonoro “Não me fale desse traidor”, seguido de uma batida enfática na mesa.
Entre 1930 e 1934 convive com vários intelectuais da Fronteira Oeste. Em 1936 trabalha como engenheiro na região das Missões. Dois anos depois é documentada sua atividade de engenheiro naquela parte do Estado, onde permanece até 1949. Data desse período a consolidação da amizade com Aureliano de Figueiredo Pinto, que foi visitado pelo poeta de “Tradição”, em sua casa de Santiago do Boqueirão, encontro imortalizado pelo autor de “Memórias do Coronel Falcão”, num poema publicado pela primeira vez em junho de 1938 na Revista Ibirapuitan, de Alegrete.
Ei-lo:

JUCA RUIVO

No meu rancho...
rancho velho missioneiro (como cupim na coxilha)
desbarriado no oitão norte, desquinchado no oitão sul,
numa tarde de outono
(outono já quase inverno)
veio chegando ao tranquito, um Ruivo de poncho azul.

Pediu pousada o andante...
Vinha do Quaraí... percisava um descanso... pra jornada larga.
Fiquei desconfiado... (cousas sem motivo!)
E de noite no fogão, com olhos cravados,
mui pensativo,
o tal cinchava quietito o chimarrão de erva amarga.

Na noite o vento – ave grande, lidava
por aninhar-se nas copas dos cinamomos.
E os galhos se alvorotavam com as largas assas de pluma
do lechuzón desconforme.

Uma coruja gritou no copiar do galpão.
E os cuscos acoavam (se não dorme, o outro não dorme)
acoavam na noite crespa bocando na escuridão.
Diacho de Ruivo mais quieto que diz que vem do Quaraí...
sombrio como mato grande...
mais empinado que um cerro...
calado como laguna quando tem céus dentro d’água...
Virá por “mala-cabeza”?!

Todo andarengo que vem de outros pagos
calculo que venha seguido de perto
pelas escoltas da própria mágoa.

Reajeitei os tições... E a lavareda
ondulou com cabelos de gringa que por amor se afogou.

O Ruivo, o chapéu nos olhos,
ergueu o sombrero!
Mexeu-se no banco...
E me encarou despacito como quem mira um parcero.

Foi um sinal de maçom...
De relancina
nos entendemos mui bem:
Passei-lhe o frasco de canha, que ele encostou devagar,
mas com força junto à boca, como uma boca de china
que se custou a beijar.

Ah! – Ruivo... se “Usted lo viera”!
Se foi aos arreios... sacou a cordeona!
(cordeona com mais floreados do que pilcha de Oriental).
E já parecendo outro,
com garbo e sestro de potro
abriu a gaita campeira dentro da noite outonal.

Só quem ouviu se recorda
pra sempre, por toda a vida
dessa cordeona sentida,
de nostálgica dolência:
com choros de tecla e corda,
com gritos de peleadores,
e olhar campeando nos rumos de querendona querência.

Todo o pampa repassava na voz da cordeona
macia e brava, feroz e chorona,
terna, violenta, sentimental.
Fogaréus, lunaréus de incêndios e de ocasos...
Mortas legendas brotando à tona
de olvidado reconto imemorial.

Horizontes de mar. Plainos rasos.
Cruz de estrada dos ermos missioneiros.
Assombrações. Contos Campeiros. Romances e casos.

Fronteira aberta para os castelhanos.
Selvas e serras Uruguai abaixo.
E o guapo penacho de heróis campechanos.

Depois, nas teclas mais finas
ia contando de chinas,
alarifonas,
que entre refugos e espantos
deixaram a não sei quantos,
nas caronas...

E as tartígradas, longas cerreteadas...
E o umbu das lendas que não morrem.
E as canhadas fundas onde primeiro a noite acampa.
E as machucadas do tempo, as caladas cansadas,
as sombras das mortas taperas do pampa.

Quando o Juca Ruivo encilhou
o pangaré, e descambou lá longe,
já nós dois, índios soturnos, nos tratávamos de ermão...
E me deixou cevaduras de sua gaúcha mágoa,
pra temperar a caúna das noites do meu fogão...

E onde andará o Ruivo amigo?
sombrio como mato grande...
mais entonado que um cerro...
quietito como laguna quando tem céus dentro d’água...?

Esse poema – dentro de toda a limitação de concrescibilidade que se pode encontrar num poema – remete a um aspecto biográfico que contribuiu para o crescimento da “lenda” chamada Juca Ruivo. Ao falar em “escoltas da própria mágoa”, que seguiam de perto o “andarengo”, e à “lavareda (que) ondeou com cabelos de gringa que por amor se afogou”, remete à desilusão amorosa sofrida pelo poeta diante da oposição sofrida diante do amor por uma Argentina, que culminou, pouco antes do encontro com Aureliano, com o autor de “Tradição” queimando os originais dos seus poemas nas ruínas missioneiras. Lembremos que Aureliano também tentou queimar os originais do romance “Memórias do Coronel Falcão”. Não foram os primeiros, nem os últimos autores a lançarem suas obras às chamas...
Maçom, em 1940, assume a Venerabilidade da Loja em São Borja. Atrita-se e deixa de freqüentar as reuniões, conforme depoimento de sua viúva Alaíde. Constrói a Vila Militar da cidade, onde conhece Alaíde Messina Costa, de 12 anos. Acaba morando na mesma casa de Alaíde, junto com o sobrinho Aimoré, filho de sua meio-irmã Maria Luíza. O poeta ensina português à menina, que falava apenas espanhol. Começa um namoro entre ambos, contra a vontade da mãe e do padrasto, preocupados com a diferença de idade entre ambos. Aimoré, que viera do Rio de Janeiro, onde era maltratado pela madrasta, é outro que se opõe.
Juca e Alaíde passam a viver juntos, casando-se apenas no civil, em São Borja, no dia de Natal de 1948, mesmo ano em que foi fundado o “35 – Centro de Tradições Gaúchas”, oportunidade em que os fundadores do primeiro CTG apontaram os poemas de Juca Ruivo, Glaucus Saraiva e Aureliano de Figueiredo Pinto, como modelares da poesia gauchesca. No ano seguinte é contratado pela Companhia Territorial Sul Brasil, de Porto Alegre, para trabalhar como agrimensor. Com o falecimento do diretor regional da empresa, exerceu também essa função até sua própria morte. Em 1950 reside com a mulher num hotel de Iraí, onde recebe a visita de Aureliano de Figueiredo Pinto, que como médico trata-lhe o velho ferimento da perna, e de João Octávio Nogueira Leiria.
Muda-se para Cunha-Porã, em Santa Catarina, e no dia 6 de setembro de 1953, nasce o filho José Ayres Costa Leal, em São Borja, para onde mandara a esposa grávida, em busca de melhores recursos médicos. Entretanto, fez questão de que o menino fosse batizado em Maravilha, nascente povoação catarinense que tem o poeta alegretense como fundador oficial.
Por volta de 1954, em Porto Alegre, é apresentado por João Octávio Nogueira Leiria ao jovem poeta Jayme Caetano Braun, que imortalizaria esse evento no poema “Encontro com Juca Ruivo”, publicado no livro “Potreiro de Guaxos” (Porto Alegre, Editora Sulina, 1975).

Encontro com Juca Ruivo

Virava de meio-dia,
Tempo quente – de mormaço,
Quando pegaram meu braço:
Era o Nogueira Leiria,
Índio que a gente aprecia.
Crioulo – do cerne à tona.
Vinha rustindo carona
No costado de outro cuera,
Era o RUIVO da Tapera
Era o Ruivo da Cordeona.

Era o RUIVO – que venero
Desde as tropeadas da infância
E que admiro à distância
Com grande apreço sincero.
Era o RUIVO – quero-quero
Da Tradição Campechana.
Era o RUIVO – a voz pampiana
Do CAMINHO DAS MISSÕES.
Era o pajé dos fogões
Com floreios na badana.

Era o RUIVO – da Saudade
Passado vindo das eras,
Olfateando primaveras
No rumo da mocidade,
Era o RUIVO – de verdade,
Mais sério que um urutau.
O RUIVO – cujo recau,
Entre a costura dos bastos,
Guarda semente dos pastos
Das querências do Jarau.

Era o RUIVO – do Umbu
Da Tapera – desquinchada,
O RUIVO – venta rasgada
Dos trastes de couro cru.
O RUIVO do Ñanquentru
De coração abugrado
Que ao fogão arrinconado
Lamenta alguém que se foi
E só vê o olho-de-boi
Onde sumiu seu tostado.

O RUIVO do Quaraí
Que mamou no Garupá.
O RUIVO do Boitatá
E da petiça Nambi.
O RUIVO do Ibicuí
De gloriosas correrias.
O canto das sesmarias
Que ao Rio Grande consagrou
As saudades que plantou
Junto à cruz do MALAQUIAS.

O RUIVO – que o Aureliano
Numa tarde – quase inverno,
Benzeu num mate fraterno
Chimarreando – mano-a-mano,
Enquanto – “O vento haragano
Pelas copas se arranchou
E a labareda ondulou
Como cabelos de gringa
Que se atirou na restinga
E por amor se afogou...”

O RUIVO que eu encontrei,
Depois de tanto tropear
Sem as garras de domar
Com que de longe sonhei.
O RUIVO de buena lei
Que simpatias deságua
E até na gaúcha mágoa
Demonstra grande fortuna:
- “É quieto – como laguna
Quando tem céus dentro d’água.”

Ah! RUIVO bem imaginas
No teu instinto avoengo
As mágoas deste andarengo
Que vaga – traçando esquinas...
Sem umbus – nem Sinas-sinas,
Que mal ao Céu pode ver,
Mas que anseia renascer,
Numa gaita – nem que seja,
Ou num broto de carqueja,
Um dia – Quando eu volver!

JUCA RUIVO – és, sem alarde,
Um guarda-fogo de angico
E o galpão de pára Chico
Quando esse teu estro arde.
E eu quero dizer – mais tarde,
Andarengo paiador,
Ao falar do verso-flor
Pra que todo o mundo entenda:
JUCA RUIVO – não é lenda,
Eu conheci esse cantor.

“Encontro com Juca Ruivo” é altamente significativo. Jayme Caetano Braun conhecia muito da gauchesca anterior e contemporânea. Vivendo isolado, “pelos fundos de fazendas”, Juca Ruivo era uma lenda viva.
Nos anos seguintes sua vida se divide entre o trabalho na empresa colonizadora, em Santa Catarina, e casa da família, em Porto Alegre, onde, a partir de 1956, a esposa passa a residir com os filhos do casal e uma sobrinha adotada por ambos. Alaíde viaja, seguidamente, para o Estado bariga-verde, servindo até mesmo de motorista do marido. No ano seguinte é fundada a Estância da Poesia Crioula, na capital dos gaúchos. Surge a proposta de que a entidade publique uma antologia com os poemas de Juca Ruivo, reconstituindo os originais queimados. Alvoroçam-se os poetas. Alguns o acusam de plagiário de Elias Regules, e do “Martín Fierro”, de José Hernández. Revolta-se. Pede a Adelaide que lance os originais ao fogo. Ela o estimula a publicá-lo. Então, o CTG Minuano, de Iraí, dá, pela primeira vez, letra de forma aos poemas do poeta quaraíense, sob o título de “Tradição”.
Nos anos seguintes o poeta, de novo, sai de cena, mesmo, em 1958, o estádio de futebol de Maravilha, recebendo o nome civil de Juca Ruivo: Estádio Doutor José Leal Filho. Em 1961 reaparece, ao interceder para que a praça fronteira à Prefeitura de Maravilha receba o nome de Alcides Maya. A imprensa gaúcha identifica o autor da homenagem como o poeta Juca Ruivo.
Novos anos de ostracismo, mas de intenso labor literário, burilando os poemas inconclusos e inéditos: “Malaquias” e “Dias de Glória e de Miséria – Retrato do Rio Grande da Minha Geração”.
Em 17 de dezembro de 1969, recebe nova homenagem de Maravilha, através da fundação do Centro de Tradições Gaúchas Juca Ruivo. Nos anos seguintes, enquanto trabalha nos sertões catarinenses, começa a ser entrevistado por José Alberto Barbosa, em Palmitos. Em 1970, participa do grupo que fomenta a criação do Museu Municipal Pe. Fernando, em Maravilha. Em 6 de setembro de 1971, em Palmitos, escreve a tese matemática: “O Paradoxo de Aquiles e a Tartaruga”. Nesse mesmo ano, propriedades da Cia. Territorial Sul-Brasil são invadidas por trabalhadores rurais sem-terras. Juca Ruivo evita medidas de força contra os invasores. O velho poeta e revolucionário mantém-se fiel aos sonhos de igualdade expressos no poema “A Esperança”.
Recebe um grande golpe com o falecimento de João Octávio Nogueira Leiria. Testemunhara o esforço do autor de “Rincões Perdidos”, durante mais de duas décadas, traduzindo o “Martin Fierro”, de José Hernández, cuja tradução saiu em letra de forma no mesmo ano de falecimento do tradutor. No dia 22 de fevereiro desse ano escreveu “Tavico”, seu último poema.

Tavico

Oh! A insídia dos rumos imprevistos
e das grandes caminhadas sem repouso...
J. O. Nogueira Leiria

“Campos de Areia” – oh! “Rincões Perdidos”,
luto fechado botareis agora.

Usai um fumo nos sombreiros guascas,
vós que viveis nessas querências mansas.

Calou-se a voz que lhes cantou as plagas,
quando as cruzava em seu bagual cebruno.

Luzindo a marca de ancestrais nogueiras,
em memoráveis, árduas campeireadas;
ou em tropeadas de esteadas léguas,
nas madrugadas de luar vestidas,
alvorotando o quero-quero alerta,
e debandando os ñandus despertos.

Se foi Tavico da crioula estância,
pr’aquela imensa onde Aureliano mora,
chegando ao laço de imprevistos rumos,
das caminhadas, grandes, sem repouso.

Adeus comparsa de gaúchas lidas,
parceiro invicto de carreiras grandes!
Guarda-me um canto no teu rancho etéreo,
onde possamos chimarrear, de mano,
pois qualquer dia estarei contigo,
Juca Ruico – 22.02.72

Em 12 de abril de 1972, durante visita a Porto União, Santa Catarina, Juca Ruivo recitou o poema para José Alberto Barbosa, que datilografou, no ato, solicitando que fosse autografado pelo poeta. Pouco depois, a 8 de maio de 1972, José Leal Filho, o poeta Juca Ruivo, faleceu em Porto Alegre, de enfarto do miocárdio. Não pode realizar o sonho de acabar seus dias em Maravilha. Foi sepultado na capital rio-grandense.
Nos últimos anos, pesquisadores do Rio Grande do Sul e Santa Catarina uniram esforços para divulgar a vida e a obra do poeta. Destacam-se José Alberto Barbosa, José Isaac Pilati e João Batista Marçal.
“Tradição” começa repercutir ainda mais. Em 1985 sai a segunda; em 2002, a terceira e, em 2004, quarta edição do livro, contribuindo para a humanização do revolucionário José Leal Filho ou José da Silva Leal filho, poeta Juca Ruivo, que foi uma lenda viva.

AURELIANO DE FIGUEIREDO PINTO



Paulo Monteiro

DEDICO ESTE ENSAIO AOS CONFRADES DA ACADEMIA DE ARTES, CIÊNCIAS E LETRAS CASTRO ALVES, DE PORTO ALEGRE, QUE ME ELEGERAM PARA A CADEIRA Nº 13, DE MEMBRO CORRESPONDENTE, CUJO PATRONO É AURELIANO DE FIGUEIREDO PINTO

Aureliano de Figueiredo Pinto é reconhecidamente um dos mais representativos poetas gauchescos do Rio Grande do Sul. À exceção de um belo artigo do passo-fundense Hilton Luiz Araldi pouco mais se encontra sobre a vida do autor de “Romances de Estância e Querência”.
Poeta e romancista, nasceu na Estância São Domingos, município de Tupanciretã, no primeiro dia de agosto de 1898, filho de Domingos José Pinto e Marfisa de Figueiredo Pinto. Alfabetizado em casa, pela própria mãe, partiu para Santa Maria, em 1908, onde cursou o ginásio. Publicou os primeiros poemas em 1914, na revista “Reação”, de Santa Maria. Dois anos depois se transferiu para Porto Alegre, preparando-se para cursar Direito, mas optou pela Medicina. Introspectivo, recebeu o apelido de “O Corujão”.
Em 1918 divulga novos poemas em revistas e no “Correio do Povo”. No ano seguinte envia ao amigo Antero Marques o poema “Toada de Ronda”, que introduz o “nativismo de feição moderna” em nosso Estado. Assim, insere a literatura rio-grandense num amplo movimento de renovação da gauchesca iniciado no Uruguai. O poema, em sua forma definitiva, seria publicado em “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo”.
Trata-se de um movimento que tem suas origens na revista “El Fogón”. “Em setembro de 1895 – escreve o professor Daniel Vidart – um conjunto de entusiastas burgueses montevideanos funda a Revista ‘El Fogón’ para fazerem brilhar nela suas fagulhas poéticas. Isto não era um fato isolado. Depois da consagração do ‘Martín Fierro’, de José Hernández, que superou em qualidade e riqueza ao seu modelo ‘Los tres gauchos orientales’, de Lussich – ambos editados em 1872 – havia florescido em ambas as margens do Prata uma subliteratura gauchesca, forjada ao paladar de um ávido público consumidor. Esta produção, comumente de ínfima qualidade, arrastou, durante uns vinte anos, à decadência um gênero que nasceu como um testemunho e culminou como uma evocação. Os abortos teatrais brotados a esse amontoado inauguraram a luz dos holofotes do picadeiro circense um incessante pulular de dramalhões – puro talho, punhalada e chorar de chinas e nazarenas – que satisfaziam as exigências dos litorâneos nostálgicos do campo distante. Por seu lado, as produções poéticas – de algum modo tem de chamá-las – circularam de mão em mão muito mal impressos em livrinhos, folhetins e folhas soltas que eram lidas aos tropeços pelos leitores nas penumbras dos bolichos ou dos ranchos suburbanos e paupérrimos enquanto um auditório analfabeto procurava reconhecer, atrás dos afetamentos e deformações, o distante sistema de sinais de uma realidade afundada para sempre. Os agitados pelo êxodo rural, sobreviventes de uma sociedade que substituído a existência periférica do gaúcho pela igualmente marginal do povinho de ‘ratos’ ou a ‘vila-miséria’, se encontravam elegiacamente com um paraíso perdido, convertido em mito, habitada por uma turba de fantasmas melenudos que combatiam com a força prepotente e bêbada, representante do governo, aliada com os estancieiros e protegida pelos comerciantes e, por isso, sempre vencedora".
TOADA DE RONDA

A Cassio Annes Dias

Ronda mansa... Noite linda!
Bem baio-branco está o luar.
Rondando o segundo quarto,
Companheiros! vou cantar:

É lindo uma comitiva
quando se vai fazer tropa:
poncho e laço, galho atado,
chapéu batido na copa.

E a cavalhada por diante,
e os pingos barbeando o freio.
Charla a indiada estrada fora
inté o primeiro rodeio.

Fora boi!... Sta fora o boi!
boi brasino, que é bom pelo.
E, como corda de viola,
chega o brasino ao sinuelo.

Meu mourito Orelha-Curta
sabe como é que se faiz:
se o boi pula... pula junto,
não se apartam nunca mais.

Quebra boi... ai! quebra, quebra!
Bate aspa e casco – é uma piorra.
Quebra... quebra... ai! varre... varre!
que redemoinhe e não corra!

Nesse trechito o meu Zaino
à direita e esquerda calça.
Que rédea, amigos! o flete
parece que dança valsa.

Ôpa... Ôpa... Marcha... marcha!
E, na primeira porteira,
é só no mais... Talha... Talha!...
no meio da polvadeira.

Meu Pangaré-Malacara
– com a cavalhada na ponta –
se empina e atira e não pára:
quage me faiz errá a conta.

Venha... Venha... Venha boi!
Abro o peito nas estradas.
Venha boi... ai! venha... venha!
E a tropa marcha encordoada.

E eu chamo ao tranco do Alegre
– chapéu torto, pala ao vento,
mais hôme que um comandante
na frente de um Regimento.

Venha... venha... ai! venha boi!
Passo cheio ou povoação,
quando abro este peito velho,
a tropa é aquele cordão.

No meu tordilho Gadelha,
que é um peixe em que coube arreio,
largo tropa inté no mar,
tanto faiz baixo ou bem cheio!

Ai que boi... Ai! volta... Volta!
Deus do céu que escuridão!
Volta boi... (qual volta... Volta!)
troveja na escuridão!

Quando ela estoura na ronda,
sem medo o Pachola espicho!
que ele sabe onde hai buraco
pela catinga dos bichos.

Ah! uma quadrilha macota
é o galardão do tropeiro.
Sai dos pagos missioneiros
chega escarceando em Pelotas...
Embora simpático ao Partido Republicano Rio-Grandense, ao testemunhar o massacre de operários promovido pelo governo de Borges de Medeiros, marcam sua indignação contra toda e qualquer forma de ditadura, influenciando na concepção do romance póstumo “Memórias do Coronel Falcão”. Segundo os seus biógrafos esse massacre teria acontecido em 1920. Ao compulsarmos a história do movimento operário gaúcho concluímos que os fatos aludidos devem ser o massacre de trabalhadores, em Porto Alegre, durante a greve de 1919.
Em 1924 transfere-se para o Rio de Janeiro, onde cursará Medicina. Dois anos depois, retorna ao Rio Grande do Sul, participando da Revolução de 30 como capitão-médico. No ano seguinte conclui o curso de Medicina. Volta ao Rio de Janeiro, onde se especializa, com o professor Fernando Magalhães, em obstetrícia.
Fixa no interior do Estado. Em 1935 é convidado para assumir a chefia da III Cátedra Médica, na Faculdade de Porto Alegre, mas não aceita mudar-se para a capital. Em 1936 começa a escrever o romance “Memórias do Coronel Falcão”, que conclui em março do ano seguinte, mas que somente seria publicado em 1973.
Há uma história interessante envolvendo esse livro. Certa feita flagrou seu filho José Antonio lendo a obra. Indignado lançou os originais ao fogo, sendo salvos pela esposa Zilah. Mais tarde, alguns trechos queimados foram recuperados com o auxilio de amigos do poeta, especialmente Antero Marques.
Em 1937 assume a chefia do Posto de Higiene de Santiago, retornado a Porto Alegre no ano seguinte para casar com Zilah Lopes, com quem teve três filhos: José Antônio, Laura Maria e Nuno Renan. Em 1941, convidado pelo interventor estadual Cordeiro de Farias, assumiu a subchefia da Casa Civil, cargo que exerceu durante dois anos. Certo dia, ninguém sabe por que, abandonou tudo e retornou para Santiago. Ali, exerceu a clínica médica, enquanto a saúde lhe permitiu.
Em 1959 é publicado seu único livro em vida: “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo”, pela Editora Globo. O filho José Antônio espera até que os primeiros exemplares estejam concluídos. Leva alguns exemplares a Santiago. O poeta está com câncer. Consegue apenas ditar à filha Laura Maria as dedicatórias e assiná-las. Falece no dia 22 de fevereiro daquele ano.
Embora Homem culto, leitor dos clássicos nacionais e estrangeiros, mistura os linguajares culto e popular com maestria.
A experiência de médico dedicado ao atendimento das camadas mais humildes da população foi fundamental para sua obra literária. As longas entrevistas mantidas com homens e mulheres pobres das fazendas e bairros de Santiago, somadas à vivência desde a infância com as atividades rurais, contribuíram para que o escritor dominasse a linguagem e a cultura dos gaúchos a pé e a cavalo.
É no romance “Memórias do Coronel Falcão” que esse livre trânsito entre os falares de homens estudados e não escolarizados é mais notável. Gustav Flaubert é apenas uma de suas influências. O autor de “Madame Bovary” serve-lhe de modelo para falar livremente sobre a sexualidade do gaúcho brasileiro, sexualidade que deveria conhecer muito bem, graças à condição de médico de aldeia. A grande influência é Euclides da Cunha, como se pode verificar mediante uma leitura atenda e meditada do romance. Como o autor de “Os Sertões”, mistura palavras eruditas, plebeísmos, arcaísmos e expressões científicas. Neste caso, através de explicações sobre fenômenos. Seguramente, beneficiou-se das críticas feitas aos aspectos formais da “Bíblia da Nacionalidade”.
Típico representante de uma geração que recuperou a obra de Simões Lopes Neto, a presença do autor dos “Contos Gauchescos” é outra constante em sua obra, como lembram os críticos. Ele mesmo foi um grande divulgador da obra literária do escritor pelotense.
“Memórias do Coronel Falcão” é o grande romance da política rio-grandense na primeira metade do Século XX. Conheceu a política estadual em suas mais altas esferas, como subchefe da Casa Civil do interventor Cordeiro de Farias, entre 1941 e 1943. Não aceitou concorrer a deputado, retornando a Santiago. E a política municipal, seguramente, conhecia muito bem. Seu livro é um retrato do autoritarismo e da corrupção. Disseca o caciquismo e a gingolagem dos dirigentes partidários a nível municipal.
A corrupção é tal que chega aos presídios. As loucas e os meninos de rua, os que jogavam pedras nas casas, roubavam frutas ou faziam algazarra, eram soltos nas celas, para diversão dos presidiários. Impostos, os companheiros de partido não pagavam.
Conhecedor profundo dos clássicos brasileiros e universais, Aureliano de Figueiredo Pinto não gostava que lhe chamassem publicamente. Luiz Sérgio Metz acredita que isso se devesse ao elevado senso crítico do autor, que conhecia profundamente os clássicos brasileiros e universais. Em 1936 já dispunha de três cadernos com poemas. Exatas duas décadas depois, inicia uma seleção, que resultará no livro “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo” (Editora Globo, Porto Alegre, 1959). Poucos dias antes de falecer, em 22 de fevereiro, recebeu dez exemplares do livro, que dedicou a amigos. Ditou a dedicatória à filha, pois mal pode assinar. Em 1963, é editado, “ad sodalibus”, o segundo livro de poemas “Romances de Estância e Querência – Armonial de Estância e Outros Poemas” (Livraria Sulina, Porto Alegre).
Em 1973, a Editora Movimento, de Porto Alegre, deu a lume a primeira edição do romance “Memórias do Coronel Falcão”, que é reeditado no ano seguinte. A edição definitiva, terceira, sai pela mesma editora em 1986, cuidadosamente revista por Antero Marques, Plínio de Figueiredo Pinto, seu irmão, e Romeu Beltrão, seu amigo, “que leu nada menos de quatro vezes a segunda edição da obra de A. de F. Pinto”. Em 1998, a mesma editora entregava ao público “Itinerário – Poemas de Cada Instante”, poemas líricos, dedicados a uma mulher, cujo nome o próprio autor rasurara, desejando que o nome fosse conhecido, mas não revelado.
A exemplo dos grandes criadores literários, os críticos se dividem ao analisar a obra de Aureliano de Figueiredo Pinto. Razão cabe a Helena Tornquist: “Num balanço final do legado desse escritor que teve a secreta intenção de estar escrevendo para as futuras gerações, deve-se salientar que uma certeza o movia: os tempos mudavam e era preciso preservar a memória do Rio Grande Agrário que se transformava. E nisto sai obra se manteve coerente: desde o primeiro poema que, nunca se afastou do propósito registrado em carta de 1936: o de fixar flagrantes e imagens de seres e instantes do meio rio-grandense”.
O que o crítico Carlos Jorge Appel, editor de “Memórias do Coronel Falcão”, afirma desse livro, se aplica a todo o restante da obra do Autor: “Se Aureliano de Figueiredo Pinto não conseguiu ressonância, foi simplesmente por não haver publicado seu romance no devido tempo”.
A partir de 1975 os poemas de Aureliano conseguiram divulgação ímpar. Noel Guarany, conhecido compositor e intérprete regionalista, conseguiu autorização da família para musicar “Bisneto de Farroupilha” e “Canto do Guri Campeiro”, que fazem parte de “Romances de Estância e Querência”, o mais gauchesco dos seus livros de poemas.
“Bisneto de Farroupilha” é um dos mais belos poemas que já se escreveu no solo rio-grandense. Nele encontramos todas as características que desse gênero ou subgênero poético: a personalidade forte, marcadamente individual, do homem da campanha, a profunda solidariedade humana, a independência diante do Estado, a bravura individual, que se materializam num quase anarquismo, oposto à modernização capitalista que a tudo transforma em mercadoria.
BISNETO DE FARROUPILHA

Pobre... Mas livre! Gauchito
no sol-a-sol, sou o que sou.
Pois nem dom Pedro Segundo
não pode – o senhor de um mundo!
dobrar o meu bisavô.

Com esta alma guapa nos tentos
debaixo do meu sombreiro,
pelo Poder e o Dinheiro
nunca ninguém me levou.
Pois nem o taura Castilhos,
famoso pelos codilhos,
pode voltear meu avô.

E ao tranco do meu Lobuno,
passam por mim carros finos,
com espertos e ladinos
que a escovação empilchou.
Sigo... Às vez’ sem nenhum cobre,
sem que a secura me dobre!
– Se meu Velho está índio pobre,
porque a ninguém se dobrou.

Conterrianos, moços lindos,
com humildades de escola,
curvam a espinha de mola,
no culto de um ditador,
seja qualquer que ele for!
– Com a fumaça de um bom fumo,
chapéu torto, corto o rumo,
ao tranco do meu Lobuno,
sem dar louvado a um senhor.

Deus velho dá o sol também
ao que sabe ser torena
e não suporta cadena
de feiticeiro ou papão.
Não me enredo nessas trampas!
E vou cruzando estes Pampas,
só escravo do coração...

.........................

AMGOS!... Quando eu me for
ao país do eterno olvido,
aqui fica este pedido
antes que a Morte comande!
– Ponham-me ao peito sem chucho
o santo trapo gaúcho
da tricolor do Rio Grande!
Quando escrevo este artigo recebo a notícia de que um grande e querido amigo, jovem de 36 anos, com o qual muitas vezes discuti sobre a história e a cultura do Rio Grande enforcou-se. Foi um dos mais brilhantes estudiosos da história passo-fundense. Lembro-me de um poema de Aureliano. E é em homenagem póstuma àquele amigo que muito colaborou para a publicação de meu livro “Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo”, que transcrevo o belo poema, que faz parte de “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo”.

RELATO DO ENFORCADO

Tudo lhe vinha ao contrário.
Nadava contra a corrente.
Tudo o empurrava pra trás.
Tudo o fazia afundar.
Às vezes desacorçoava,
mas renascia a coragem.

E já agora, ultimamente,
o mundo demoronava.
O mundo não era mundo
era uma coisa enjoativa
que se suporta por vício.

Era um quarto de lua nova
e o vento norte ventava.
Vinha uma poeira nos olhos
de sair água por nada.

Uma palavra qualquer
sentiu que a fundo o feria.
Agarrou mais fumo e palhas,
e, com um cabresto na mão,
ao mato se encaminhou:
– “ buscar um pouco de lenha...”

Olhou o angico mais alto,
com um galho para o perau.
Namorava o galho alto,
como se olhasse um sobrado
que desejasse comprar.

Ia cortando mais fumo
e mais cigarro enrolando,
largando cada tragada
de fumaceira gostosa,
das de fazer cerração.

Pensava que o mundo velho
já era um baile acabado
sem razão pra se ficar.
Namorava o galho alto,
como avaliando um sobrado
que pretendesse comprar.

Fechou um crioulo bem grande,
que botou atrás da orelha,
e foi subindo no angico
com jeitos de gato bravo.

Montou no galho bem alto,
que dava para o perau.
Amarrou nele o cabresto,
pôs laçada no pescoço,
com o chapéu bem tapeado,
bem preso no barbicacho.
Acendeu o crioulão
e largou a fumaçada,
das de fazer cerração...

Com o chapéu bem tapeado,
bem preso no barbicacho,
cerrou nos queixos o crioulo,
e resvalou-se com jeito,
para ser estrangulado.

Quando veio o delegado,
mais o escrivão e o doutor,
balançava no perau,
como se o vento o rodasse
na dança sobre os abismos.

Firme o cigarro nos queixos,
e o chapéu velho, maroto,
quebrado como em fandango.

E no rápido velório,
que corajudo haveria,
nem por Deus nem pela Virgem,
de contrariar o finado:
– querer tirar-lhe o cigarro,
querer sacar-lhe o sombreiro.

E entocou-se cova a dentro
com jeitão de malcriado:
– cigarrão preso nos queixos,
chapéu velho bem quebrado.
E a borla do barbicacho
– única flor sobre o peito...

“Romances de Estância e Querência II – Armonial de Estância e Outros Poemas” é a primeira obra póstuma do Autor. Apesar de, segundo os críticos, não ter sido organizado pelo poeta, ao contrário do que os críticos pensam, mantém, sim, uma unidade literária. Se, na primeira obra, o lirismo e o telurismo regionalistas eram maiores, aqui, destaca-se o tom épico. À exceção dos pequenos poemas que compõe a parte intitulada “DE NOITE AO TRANQUITO”, continuação do livro anterior, Aureliano traça a história do Rio Grande do Sul em versos, como no poema “OS FARRAPOS”, em que canta a Revolução Farroupilha (1835-1845).
VII
OS FARRAPOS

Sofre o Rio Grande a amputação, surpreso!
Psíquica dor no inexistente membro
irrita a gauchada atenta e alerta
que explode, enfim, na rebeldia aberta
da jornada do 20 de setembro.

Era o sonho: – a República no Império
do Prata ao Norte em confederação.
Eis o ideal por que os próceres se movem:
– vir à Banda Oriental, sendo a mais jovem
fúlgida estrela da constelação.

Falhou o sonho... E aos Generais e aos moços
só resta ir desfraldando e abrindo cancha
apodados de pobres farroupilhas,
por dez anos, por pampas e coxilhas,
a legendária tricolor sem mancha.

Tricolor! Sobre o olvido e sobre as chamas
guardas a eternidade das medalhas.
Nas cores do Brasil a componente
que te impôs o destino desta gente:
– fulgor de sangue sobre cem batalhas!

E ao lado do auriverde pavilhão
que drapejava aos minuanos e nas auras,
tens a unção dos vitrais e das estampas.
– Nossa Senhora emocional dos Pampas
transfigurando os corações dos tauras!

Ah! Trinta e Cinco... aqui estagiou Portinho
num vasto acampamento migratório.
E a Boca-do-Monte, guarda o posto,
cortando campos de janeiro a agosto,
vinham guerrilhas do tenente Osório.

E João Antônio e Canabarro, bravos,
na Cordilheira bruta abrindo o trilho,
aqui chegaram da fronteira guapa
por darem glória à tricolor farrapa
na alvorada de outubro, no Espinilho.

Farrapos e legais nessa mangueira,
às vezes uns, logo mais tarde os outros,
volteavam tumultuosas bagualadas.
E estagiavam em largas churrasqueadas
polindo as armas e domando os potros.

Lá naquela coxilha está Crescêncio,
morto nessa famosa retirada
da capital para a fronteira... E, atento,
fico pensando como o grande Bento
por honra e idéia flamejava a espada!

Bento Gonçalves!... Lidador excelso!
Republicano sem Cesário estigma,
que o infortúnio e as masmorras não consomem!
– O Sol e a argila dos rincões num Homem
com as virtudes totais de um paradigma.

Por seu ideal – livre do cetro a Pátria.
Chefe opulento e grã-senhor, concita!
E saúde, bravura, mocidade, fortuna
– esbanja pela liberdade
e morre pobre como um eremita!

Bento Gonçalves! Singular figura
em seu tempo e em seu meio! E sempre os hinos
terá do Pampa que lhe ardeu no peito.
– Verde moldura do perfil perfeito
do mais escultural dos paladinos.

Panteon soberbo do Rio Grande! Ainda
avultam todos com perfil tristonho
na gravura imortal de alta memória.
E encherão de esplendor a História
as labaredas de seu grande sonho.


A paz de Ponche Verde... à tarde e ao tranco
aqui chegou, com baixa da Coluna,
para capatazear, um campeiraço!
– O moço alferes que perdera um braço
junto de Garibaldi, na Laguna...

Aureliano de Figueiredo Pinto, ao reproduzir em estilo épico a História do Rio Grande do Sul, segue a historiografia tradicional, de cunho positivista. A não romper (pelo menos de todo) com a filosofia positivista sua obra, historicamente, é limitada. Chega no máximo a um reformismo político. Não é à toa que os estudiosos das idéias políticas ligam o populismo, seja o trabalhismo brasileiro, seja o justicialismo argentino, a influência exercita pelas idéias de August Comt.
Daniel Vidalt, em 1968, escreveu: “hoje o gauchismo, o nativismo e outras tendências afins buscam, para perdurar, novos veículos de comunicação poética. Não se animam a andar somente apoiados na palavra em meio deste vento que sobra de baixo, dos cimentos mesmos da América. A Revolução Cubana, o subdesenvolvimento como realidade e consciência, a luta antiimperialista dos povos, nos retroagem à época de Hidalgo: o poeta se transmuta então em cantor e dialoga, viola na mão e música na boca, com um auditório que reclama uma proclamação oral, direta, militante, revolucionária”.
Aureliano de Figueiredo Pinto antecipa o período retratado por Daniel Vidart. Jamais foi um revolucionário. Possivelmente, jamais o seria. Seus poemas de cunho social, como de resto várias passagens de “Memórias do Coronel Falcão”, estão cheios de conceitos revisionistas. Em “CANÇÃO DO MARGINAL” ecoam os pensamentos reformistas, que ressoariam, algum tempo depois, nos discursos do maior teórico trabalhista, Alberto Pasqualini. É um discurso ainda mais duro. Ao misturar uma prática de então, o contrabando e falsificação de pneus brasileiros, que através da Argentina, chegavam às forças nazistas.
O contrabando e a falsificação de pneus fizeram a fortuna de muitas, tradicionais e respeitáveis famílias. Por isso, até hoje, é verdadeiro tabu. Para o pobre não havia lugar nem mesmo entre os criminosos que lhe negavam um trabalho honesto. Até mesmo a desonestidade é apropriada pelos poderosos.
À época, a palavra marginal não tinha o sentido atual, de elementos criminosos, que vive à margem da Lei. Entendia-se como marginal o pobre, o proletário, o sem-terras, o descamisado, aquele que vivia à margem da Economia. Assim, como todo o poema social, é datado.

CANÇÃO DO MARGINAL

Foi legionário da coluna invicta!
Bravo, bateu-se com orgulho nobre.
Hoje, em 44, é um trapo humano.
E ouve, na angústia do seu desengano
“... não há va...gas!” Pobre...

Voluntário de 30 e 32
sonhando a Pátria que o ideal descobre,
marchou, com honra, pelejou com brilho.
E hoje, este melancólico estribilho:
“... não há va...gas!” Pobre...

Hoje, magro de dívidas e fome,
a princípio a tragédia mal encobre.
Mas, afinal também quer ter sossego.
E eis a resposta à súplica de emprego:
“... não há va...gas!” Pobre...

Pobre! Cansado de esperar promessas
na esperança de que a sorte se lhe dobre,
pede um posto, um lugar, modesto cargo.
E ouve ferino este refrão amargo:
“... não há va...gas!” Pobre...

Triste! A miséria, os filhos em andrajos,
tudo lhe soa com suturno dobre.
Pede um lugar ao sol para o trabalho.
E a resposta é mais dura do que um ralho:
“... não há va...gas!” Pobre...

Doente! O peito lhe arqueja num cansaço.
Não há tranqüilidade que lhe sobre.
Algo mendiga que permita um prato.
Como resposta o estúpido e gaiato:
“... não há va...gas!” Pobre...

Cansa! E se lembra dos pneus rendosos!
Talvez no contrabando não sossobre
tendo agasalho e pão para a família.
Grita-lhe a opulentíssima quadrilha:
“... Não há va...gas!” Pobre...

Em "Romances de Estância e Querência II – Armonial de Estância e Outros Poemas”, encontramos ao final da obra, alguns poemas que são verdadeiros testamentos do poeta.
O MEU CRISITANISMO

Às minhas patrícias

É a velha, humana, repetida história:
depois de um doloroso dia-a-dia,
resta a cinza das flamas da energia
e o gosto amargo da existência inglória.

Sob a soalheira, ou pela noite fria,
seguindo a estrela esplendida e ilusória,
teci o mais alto bem na alheia glória
sem mesmo perguntar porque fazia.

Vêm depois os crepúsculos caindo.
Faço a minha colheita na amargura
das pobres searas do meu sonho lindo.

E no pudor da mágua sem alarde,
espero o olhar de Deus baixar da altura
na última luz do sol da minha tarde...

Num outro soneto, espécie de complemento daquele que transcrevo acima, há um canto de gratidão a Deus. Vê-se a limitação que o médico entendia no seu trabalho, lembrando às vezes em que intercedera em espírito de oração pela saúde dos filhos.

ESTOU GRATO, SENHOR

Quanta vez, coração feito em pedaços
com filhos – presas de tremenda doença,
eu Te pedi, Senhor! Na angústia intensa,
com voz do pensamento nos espaços:

– Todo infortúnio, toda grave ofensa
afasta dos caminhos e dos passos
da criança enferma que hoje trago aos braços
e caia sobre mim tua sentença.

Estou grato, Senhor! Pelo que passa:
a mim os males que fatais pressinto,
a eles as luzes da Divina Graça.

Estou grato, Senhor! Sombras se adensam
na minha tarde. E que feliz me sinto
se aos filhos deste as tuas grandes bênçãos.

E “Romances de Estância e Querência II – Armonial de Estância e outros poemas” encerra-se com este soneto magistal:

ÚLTIMA PÁGINA

Vida que vai ficando... A encantada paisagem
e os entes que se amou. E as cousas que se quis.
Gestos de amigos leais. Femininos perfis
que deixaram num verso a enternecida imagem.

Dura viagem da vida... A romanceada viagem.
De instante a instante. Aqui e além. Triste ou feliz.
Com inscrições de bronze e legendas de giz
no roteiro incolor da efêmera passagem.

Certos dias que estão embalsamados na memória.
Certas noites de luar. E as dardes de aquarelas.
E esses vitrais de acaso. E tanta íntima história.

E vamos indo... Até – sem um rictus na face –
à hora convencional das irônicas velas
e o tremendo latim do – Requiescat in pace...

Carlos Jorge Appel, editor e crítico literário, na Introdução que escreveu para “Itinerário – Poemas de Cada Instante”, conta que a obra de Aureliano de Figueiredo Pinto proporcionou-lhes duas surpresas. A primeira delas o romance “Memórias do Coronel Falcão”.
“A segunda surpresa nos chegou às mãos, de novo, através de José Antônio de Figueiredo Pinto, sempre preocupado com a obra do pai, em dezembro de 1996: os poemas inéditos contidos num único caderno, com o título de Itinerário – poemas de cada instante. Ao me passar os originais manuscritos, com letra, em geral, clara e inteligível, José Antônio observou: “a página inicial está rasurada ao meio. Foi intencional. Deveria estar aí uma dedicatória que meu pai não quis que aparecesse. Mas a gente sabe a quem a dedicatória foi feita”.
(...)
“A natureza exterior, a campanha, os costumes, o modo de vida do gaúcho com seus avatares e linguagem própria compõe a matéria-prima de Romances de estância e querência – Marcas do tempo e do seu segundo livro, publicado após a sua morte, Armonial de estância e outros poemas.
Em Itinerário, o dia-a-dia da campanha cede lugar ao mundo interior, onde os temas são a transitoriedade do amor, a paixão, a perda da mulher amada, a desolação, a morte, os limites do ser humano. A linguagem acompanha a universalização dos temas e alcança uma dimensão clássica, ou seja, aquela dimensão que está para além de todos os modismos e circunstâncias e que expressam o essencial do homem de todos os tempos”.
De fato, como reconhece o editor e revisor de duas das obras de Aureliano, perpassa em todo esse pequeno grande livro, um lirismo de sabor clássico. Muitos poemas lembram Fernando Pessoa e seus heterônimos. Em tantos deles há algo lembrando Alberto Caeiro. E é exatamente isso que confere a “dimensão clássica” destacada por Jorge Carlos Appel, a começar pelo soneto que abre a coletânea.
EX-LIBRES

Vida integral. Total. Princípio e fim!
Amo-te até no mal que me lacera.
E, a cada novo instante que me espera:
– Vida! Me exalto por viver-te assim!

A alma fulgura. O sangue reverbera.
E aos dardejantes sóis, no torvelim,
sinto que vibram séculos em mim,
nas soalheiras de cada primavera.

No meu dia de doida claridade
as corolas e os ninhos – soluçantes
fremem nos ritos da perpetuidade.

Quando eu rolar para o meu chão profundo,
algo de mim perpetuará os instantes
com que a mim mesmo me esbanjei no mundo...

Nesse soneto, em que apresenta os demais poemas, há mais do que lirismo, há reflexão lírica, o que, de certo modo, será uma constante em Itinerário. Aqui se vê a “dimensão clássica”, em toda a sua extensão, como “Vida integral”. E vida integral é a união entre o interior do “Amo-te até no mal que me lacera”, pela exaltação desse amor, a fulguração da alma, a reverberação do sangue, o dardejar dos sós, a vibração dos séculos nas soalheiras primaveris. Tudo isso indo acabar no “chão profundo” de cada ser humano.
Essa fusão de elementos interiores e exteriores somente pode processar-se através da racionalidade, que somente pode ser a mediação lírica ou o lirismo reflexivo. O que caracteriza o clássico, mas o clássico mesmo, no sentido de retorno à ancestralidade grega, é a união entre razão e sentimento.
Os gregos do período áureo, ao separarem razão e sentimento, causaram um grande mal à Humanidade. Ocorreu a separação entre o homo sapiens e o homo demens, revelando os complexus, aquilo que é tecido em conjunto, na melhor definição grega, segundo vemos em “Amor Poesia Sabedoria”, de Edgar Morin. Aureliano de Figueiredo Pinto, em Itinerário, reúne o que a racionalidade separou, reconstitui o homo sapeins/demens, a “vida integral”, o homem integral. E isso apenas é possível porque nele o homo sapiens, representado pelo médico, está a serviço do homo demens, o poeta.
A integralidade humana envolve a ligação do homo sapiens/demens com a Natura. Aí a análise de Jorge Carlos Appel é limitada quanto à poética de Aureliano. A natureza da campanha e o modo de vida do gaúcho estão presentes, sim. Vemo-los através da história, representada pela vibração dos séculos, que plasmaram o modo de vida do gaúcho, e do meio, materializado pela soalheira primaveril, que temperou o homem do campo rio-grandense.
Veja-se, a seguir, outro dos tantos sonetos de Itinerário onde é plena a integralidade entre homo sapiens/demens e Natura:
XIII


A água que eu bebo tem o gosto do teu beijo;
a manhã lembra a luz pagã do teu sorriso.
Sugere a névoa o vago olhar, longe, impreciso,
de quando aplacas, fina e langue, o teu desejo.

A asa que passa, no céu alto, em vôo andejo,
lembra o teu gesto arisco em sutil sobreaviso.
E, na árvore alta e fina, e na flor do paraíso,
tendo-te toda em mim, sempre em tudo te vejo.

Bruna e pálida, alta e trêmula, os cabelos
cheios da escuridão das noites em que amamos!
– Sinto-te no meu sangue em tumultos e apelos.

Em tua leve silhueta o mundo se resume.
E quando, sem encontrar-nos, nos buscamos,
ruge em minha alma em sombra a alma do teu perfume.
A gauchesca, o nativismo, a canção de protesto, o lirismo de recorte clássico, que fazem lembrar “o gauchismo cósmico” de um Fernán Silva Valdés ou de um Pedro Leandro Ipuche, estão presentes na obra poética de Aureliano de Figueiredo Pinto. Poeta culto, usa a profissão de médico para apropriar-se da alma gaúcha, resumindo a evolução estética da poesia popular de raízes regionalistas, a gauchesca. E isso o transforma no mais representativo poeta gauchesco, nativista ou de “outras tendências afins” de língua portuguesa de todos os tempos.
Aureliano de Figueiredo Pinto jamais teve a preocupação de dar ampla publicidade a sua obra. A política, seja partidária ou literária, eram-lhe quase que indiferentes. Possuía uma acurada consciência da durabilidade de sua obra, como vemos neste trecho, dele mesmo, com que Helena Tornquist encerra a biografia que dedicou ao escritor: “A nossa vida, na renúncia de sua modéstia tem algo a dizer à mocidade de amanhã, porque foi vivida à nossa maneira, ao jeito do fio d’água que corre à margem da barulhenta cascata que é a opinião-do-Senhor-todo-Mundo”.

Bibliografia:
APPEL, Carlos Jorge. “Memórias do Coronel Falcão”. Apresentação, In: PINTO, Aureliano de Figueiredo. “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo” (Primeira Edição). Porto Alegre, Editora Globo, 1959.
APPEL, Carlos Jorge. “ITINERÁRIO – Poesia inédita de Aureliano de Figueiredo Pinto”. In: PINTO, Aureliano de Figueiredo. “Itinerário – Poemas de Cada Instante”. Porto Alegre, Editora Movimento, 1998.
PINTO, Aureliano de Figueiredo. Memórias do Coronel Falcão. Porto Alegre, Movimento, 1974, p. 5-17.
GARCIA, Serafin J. “10 Poetas Gauchescos del Uruguay”. Montevideo, Libreria Blundi, 1963.
METZ, Luiz Sérgio. “Aureliano de Figueiredo Pinto”. Porto Alegre, Tchê! Editora Ltda./RBS, Porto Alegre, 1986.
MORIN, Edgar. “Amor Poesia Sabedoria”. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 2002.
PINTO, Aureliano de Figueiredo. “Romances de Estância e Querência – Armonial de Estância e Outros Poemas” (Primeira Edição). Porto Alegre, Livraria Sulina, 1963.
PINTO, Aureliano de Figueiredo. “Memórias do Coronel Falcão” (Terceira Edição). Porto Alegre, Editora Movimento, 1986.
PINTO, Aureliano de Figueiredo, “Itinerário – Poemas de Cada Instante”. Porto Alegre, Editora Movimento, 1998.
TORNQUIST, Helena. “Aureliano de Figueiredo Pinto”. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1989.
VIDART, Daniel. “Poesía y campo: del nativismo a la protesta”. Capítulo Oriental 23. Modevideo, Centro Editor de America Latina, 1968.