quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Cruz e Sousa, o esquecido



Paulo Monteiro

No dia 24 de novembro de 1861, em Desterro, hoje Florianópolis, nascia João da Cruz e Sousa, negro puro, filho de dois escravos africanos legítimos, Carolina e Guilherme, alforriados por Guilherme Xavier de Souza, pouco antes de partir para Guerra Contra o Paraguai, conforme conta Abelardo F. Montenegro em (Florianópolis: Cruz e Sousa e o Movimento Simbolista no Brasil, Fundação Catarinense de Cultura, 1988).
Cruz e Souza exerceu múltiplas atividades profissionais: jornalista, professor, ator, e, por fim, ferroviário. Em vida publicou apenas dois livros, em 1893, Missal (prosa) e Broquéis (poemas), que bastaram para transformá-lo no “chefe da escola simbolista”. Postumamente saíram: Evocações (1898), prosa, Faróis (1898) e Últimos Sonetos (1905), ambos de poemas. Somente em 1923 foi lançada a primeira edição de sua Obra Completa. Todas essas edições póstumas, graças aos esforços do crítico literário Nestor Vítor.
Faleceu tuberculoso e miservalmente, na cidade de Sítio, Minas Gerais, a 19 de março de 1898. O cadáver, ainda fora do esquife, chegou ao Rio de Janeiro, num vagão de cavalos. A desgraça continuou a persegui-lo, mesmo depois de morto.
“A família do Dante Negro não tardou a desaparecer. Vítima da tísica, Gavita faleceu a 13 de setembro de 1902. Logo depois, morreu um filho. O quarto – filho póstumo – cursava o Pedro II quando a tísica o vitimou em 1915, aos 17 anos (Ed. Cit., p. 168)”, escreveu Abelardo F. Montenegro. Enganou-se, este deixou uma companheira grávida, que perpetuou a descendência do poeta negro.
Jorge Bastide, sociólogo francês que viveu longos anos no Brasil, coloca o poeta catarinense ao lado de Mallarmé e Stephan George, formando uma “tríade” parnasiana mundial. Cruz e Souza, em vida, foi discriminado por brancos e negros.
Quando da fundação da Academia Brasileira de Letras seu nome foi excluído, história que está contada por outro biógrafo, Raimundo Magalhães Junior (São Paulo: Poesia e vida de Cruz e Souza, Editora das Américas, 1961, páginas 151 a 159). Trata-se de mais uma exclusão levada a efeito pelos brancos, muitos deles abolicionistas. O pior é que entre eles havia mulatos, como Machado de Assis.
Já no que se refere à discriminação que lhe votavam os negros sirva esta passagem de Uelinton Farias Alves: “Nestor Vítor revela, em depoimento prestado a Andrade Murici, e que este publicou em suas memórias, no livro ‘O Símbolo – A Sombra das Araucárias’ (Ed. 1976), que um dos seus infinitos motivos de gratidão para com ‘Catita’ – como chamavam, na intimidade, d. Catarina, sua esposa – era pelo tratamento por ela dado a Cruz e Souza e sua respectiva mulher. Quando o casal de negros era convidado para jantar em casa de Nestor Vítor ‘não havia outro remedo senão mandar as criadas passear’. Elas recusavam-se a servir aqueles negros. Quem servia, com grande carinho, mas, também, sem exagerar a gentileza, para não acentuar aquilo que representava, na época, verdadeira abnegação, era Catita”. (Florianópolis: Reencontro com Cruz e Souza, Papa-Livro Editora, 1990, págs. 30/31).
A maneira com que a intelectualidade brasileira, salvo raras exceções, vem tratando o sesquicentenário de Cruz e Sousa faz parecer que continua tudo com dantes no quartel de Abrantes.
(Publicado no Jornal Rotta, Ano 11, II Fase, Nº 209, Passo Fundo, 01 a 15 de outubro/201

Convite



Gilberto Rocca Cunha, autor de vários livros e centenas de artigos e ensaios, meu confrade na Academia Passo-Fundense de Letras, cientista reconhecido internacionalmente e um de nossos mais brilhantes escritores, convidou-me para o lançamento do seu mais recente livro, intitulado A ciência como ela é , no dia 10 de novembro de 2011, quinta-feira, às 17 horas, na 25ª Feira do Livro de Passo Fundo, à Praça Marechal Floriano. Ao mesmo tempo, solicitou que eu estendesse o Convite a todos os meus amigos e amigas.
É o que estou fazendo.
Queira, também, enviar o presente convite a outros amigos e amigas.
Conto com tua presença e de todos aqueles que apreciam uma leitura de qualidade.
Um fraterno e, desde já, agradecido abraço do
Paulo Monteiro

A ciência como ela é...



Paulo Monteiro (*)

O lançamento de “A ciência como ela é...”, de Gilberto R. Cunha, na próxima quinta-feira, dia 10 de novembro, às 17 horas, na 25ª Feira do Livro de Passo Fundo, seguramente, será uma das atividades mais exitosas do evento.
Conheço o Autor há vários anos, através dos seus livros e artigos divulgados na imprensa local. Conviver com ele, na Academia Passo-Fundense de Letras, contribuiu para aprofundar o conhecimento de sua obra. A exemplo deste, li os dois mais recentes (“Cientistas no divã” e “Galileu é meu pesadelo”) ainda nos originais.
Gilberto R. Cunha é um cientista reconhecido. Assim, tinha tudo para ser um daqueles intelectuais odiados por Søren Kierkegaard e Arthur Schopenhauer, sobre os quais deixaram algumas das páginas mais duras da Filosofia. Gilberto R. Cunha, porém, é a antítese daqueles pavões liliputianos, hoje enterrados no aterro sanitário da História, que tanto irritavam os pais do existencialismo contemporâneo.
Já escrevi que o autor de “A ciência como ela é...” escreve com rara clareza, o que o diferencia da maioria dos auto-intitulados “acadêmicos”. Pensadores comprometidos com o humanismo, de há muito, constataram que vivemos um novo período escolástico. Membros de um clero laico, por um direito satânico, expressando-se numa nova língua morta, lançam a fogueiras morais quem não faça parte desta ou daquela ordem, também laica. E a ciência transformou-se num debate entre alienados, já descritos pelo “jovem Marx” de “A Ideologia Alemã” e de “A Miséria da Filosofia”.
Gilberto R. Cunha é um humanista, e, como humanista, escreve para homens e não para “daimons”. Ao modelo dos grandes humanistas, que plasmaram as ciências, de Platão, aos contemporâneos, escreve para ser entendido. Daí, naturalmente, sua preocupação, nos últimos livros com a Filosofia da Ciência. O trocadilho que faz com “A vida como ela é...”, de Nelson Rodrigues não tem nada de inocente. Ambos (Nelson e Gilberto) deixam o Ser e penetram na Essência. Cada um, a seu modo e a seu tempo, apropriam-se da “epistéme”.
A experiência do Autor, como Chefe-Geral da Embrapa Trigo, de 1º de março de 2006 a 5 de setembro de 2010, permitiu-lhe ver “a ciência como ela é...” e os “cientistas como eles são”. Durante mais de um lustro, Gilberto R. Cunha aprendeu Filosofia da Ciência na própria carne. Aprendamos, também, com ele.

(*) Paulo Monteiro é autor dos livros “A Trova no Espírito Santo – História e Antologia –”, “Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo”, “O Massacre de Porongos & Outras Histórias Gaúchas” e “A Campanha da Legalidade em Passo Fundo”, além de centenas de artigos e ensaios sobre temas históricos, literários e culturais.

domingo, 9 de outubro de 2011

O gaúcho: os bons, os maus e os feios

Conheço Setembrino Dal Bosco há vários anos. Bancário de profissão e sindicalista por responsabilidade social é respeitado pela clareza de pensamento, amadurecido em largas leituras. Nos debates, ouve atentamente e quando intervém é para marcar posição.
Assim, distingo as idéias dele e com elas me identifico, em nossa luta comum contra as potestades humanas que transformam a Terra num vale de lágrimas de sangue.
Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo, com a dissertação intitulada “Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul {1780/1889}: capatazes, peões e cativos”, totalizando 181 páginas em formato A4, onde apresenta um dos mais profundos estudos que conheço sobre a formação histórica (econômica, humana e política) do nosso Estado. Mesmo inédito em letra de forma o estudo de Setembrino, já é referência em trabalhos de outros pesquisadores, aquém e além do Mampituba.
Ali disseca o pensamento de homens como Severino de Sá Brito, Guilhermino César, João Borges Fortes, João Cezimbra Jaques, Moisés Vellinho e Carlos Reverbel, para ficar apenas entre aqueles que se tornaram “canônicos”, em termos da sócio-gênese rio-grandense, como costumava escrever Antonio Carlos Machado.
Publicar este artigo do historiador Setembrino Dal Bosco em meu blog, mais do que compartilhar um escrito excelente, é cumprir com a finalidade expressa no próprio sentido literal de O Fio da Letra.
Paulo Monteiro


O gaúcho: os bons, os maus e os feios.

Setembrino Dal Bosco*

“O mais infeliz gaúcho
tinha tropa de uma cor;
não faltava a paz do amor
e andava bem animado,
via apenas céu e gado
se olhava o campo ao redor.”

Resumo:

Nos relatos dos viajantes que estiveram em territórios sulinos no século 19 – Auguste Saint-Hilaire, Nicolau Dreys, A. Baguet, Joseph Hörmeyer e Arsène Isabelle –, a descrição do gaúcho não corresponde com o personagem atual materializado no Rio Grande do Sul. O bom gaúcho, honrado, valente, bravo, hospitaleiro, responsável, trabalhador, sóbrio, ordeiro, patriótico etc., é antagônico ao gaúcho histórico. No Plata, o gaucho real - errante e vago dos pampas da Argentina, Paraguai, Uruguai e do Rio Grande do Sul, sem chefe, sem leis, ladrão de gado, contrabandista, etc., era considerado pela sociedade colonial como a escória degenerada e irrecuperável. O presente artigo reconstruirá o perfil do gaúcho rio-grandense a partir dos viajantes citados.

Palavras chaves: gaúcho real e romântico, Rio Grande do Sul, fazendas pastoris.






















* Setembrino Dal Bosco, 44, Historiador.



Introdução
Na região platina, um personagem polêmico ocupa lugar de destaque na historiografia sul-rio-grandense contemporânea: o gaúcho. Em geral, a biografia argentina dedicou mais atenção do que a rio-grandense a esse protagonista histórico . De consenso historiográfico, apenas a sua origem: o gaúcho teria se formado do nativo destribalizado, desgarrado, do contato do europeu com o indígena e vagueava pelos campos platinos.
Na obra póstuma de Félix de Azara, publicada por seu sobrinho Agustín de Azara em 1847, o militar espanhol que esteve na região do Prata em 1784, menciona que “os trabalhadores do campo, chamados peães, cavaleiros, gaúchos, camiluchos e gaudérios, gauchos e changadores são a ralé do Rio da Prata e Brasil”.
A antropóloga estadunidense Madaline Wallis Nichols assinala, no seu livro “gaúcho: caçador de gado – cavaleiro ideal de romance”, publicado em 1946, que o gaúcho era “fundamentalmente um colono contrabandista cujo negócio era o comércio de couros de gado. Seu trabalho era grandemente ilegal; seu caráter lamentavelmente repreensível; sua posição social à margem da lei”.
A principal atividade econômica dos gaúchos era o contrabando de couros. Os couros eram entregues aos traficantes europeus e lhes rendia algum dinheiro e produtos como a aguardente, garantindo assim, sua sobrevivência e seu modo de vida.
O escritor e Jornalista Carlos Reverbel, no seu livro “O Gaúcho: aspectos de sua formação no Rio Grande do Sul e no Rio da Prata”, publicado em 1986 e reeditado em 2002, afirma que “à medida que se desenvolvia o negócio de couros, surgiu uma pacotilha, formada por indivíduos que cortavam os campos, encarregando-se de coletar couros para os traficantes europeus, em troca de artigos que estes traziam do exterior. Esses indivíduos, chamados inicialmente de changadores e, depois, de gaúchos, terminaram recebendo o apelido de gaúchos”.

Ladrão de gado
O gaúcho é descrito pelo viajante francês, Auguste Saint-Hilaire, na sua passagem pelo Rio Grande do Sul, em 1820, como um homem de má índole. De acordo com o autor, “dada à conhecida índole dos gaúchos é possível imaginar que logo proclamada a independência foram aproveitados os primeiros momentos de desordem para a pilhagem do gado das estâncias portuguesas e que estas por seu turno vingavam-se nas propriedades espanholas. [...] nada mais comum aqui que os roubos de animais. É tão banal esse gênero de furto, que chega a ser visto como cousa legítima.”
O viajante francês Arsène Isabelle, que esteve nos atuais territórios do Rio Grande do Sul nos anos de 1833, afirma que depois da guerra de ocupação “grande parte do gado roubado pelos gaúchos, durante as lutas de partido, veio a povoar as pastagens brasileiras”.
August de Saint-Hilaire propõe que o “roubo de animais devia ser uma das primeiras consequências da guerra em uma região onde só se comia carne e onde os rebanhos constituíam a principal riqueza. Na desordem da guerra estabeleceu-se tamanha confusão em Entre-Rios que o gado tornou-se quase propriedade comum ”.

Comunidade de bons caçadores e laçadores
Nicolau Dreys, em 1839, ao descrever sobre a população da Província de São Pedro do Rio grande do Sul, faz colocações à parte sobre o gaúcho. Escreve o autor: “[...] mas a província do Rio Grande oferece ainda a esse respeito uma anomalia bem digna de se notar: é a existência de uma nação mista, intercalada entre populações originárias e que pertence à raça livre [...] de uma liberdade indefinida que as leis das sociedades vizinhas podem dificilmente refrear; dizemos nação por ter essa associação excepcional, moral, costumes e gostos sui-generis; entendemos falar dos Gaúchos”.
Dreys compara a habilidade no cavalgar do gaúcho com os mestres de equitação da Europa. Escreve o viajante: “Todos os exercícios de manejo e de picaria dos mestres de equitação da Europa são familiares ao gaúcho, e alguns dos exercícios mais difíceis são mesmo entre eles divertimentos de crianças; um gaúcho nunca desce do cavalo para apanhar suas armas ou qualquer objeto que deixou cair; por um movimento rápido, ele se debruça do cavalo até a mão chegar ao chão, sem por isso retardar o andar cavalo, seja qual for a velocidade de seu passo”.
Em 1845, o viajante belga A. Baguet descreveu essa figura histórica emblemática, controversa e, atualmente, polêmica: “O guia que contratamos em São Gabriel era um verdadeiro gaúcho, um filho puro sangue dos Pampas. Tendo participado durante muitos anos de um grupo de revolucionários, vivera muito tempo somente de carne assada sem tempero, passando as noites ao relento. Como a maior parte de seus compatriotas, era de uma habilidade extrema em lançar o laço, as boleadeiras e o facão. [...] Indique a um gaúcho um animal numa tropa de duzentos a trezentos animais com chifres: ele jogará o laço nos chifres, nas patas ou em qualquer parte do corpo do animal e este será capturado” .

Cavaleiro audaz
Segundo o viajante francês Nicolau Dreys o gaúcho era um excelente cavaleiro, se identificava com o cavalo. O cavalo era sua extensão. Sentia-se um homem superior no lombo de um cavalo. A pé, era “um homem ordinário”. A habilidade no cavalgar estava, em certa medida, definida antes mesmo que o gaúcho tivesse condições de determiná-la. Segundo o mesmo depoente, ainda crianças, essa atividade era o principal meio de sobrevivência dos gaúchos.
Nicolau Dreys afirma que o gaúcho vivia e morria com o cavalo, que nunca “recusou montar qualquer cavalo” e quando o cavalo cansava, sem pestanejar o gaúcho “o larga onde se acha, e transporta seu grosseiro arnês (arreios) para o primeiro que se apresenta e que seu laço lhe submete”
Nas suas viagens pelo Rio grande do Sul, o viajante belga A. Baguet relata, em 1845, que “em uma dessas charqueadas vimos crianças de cinco a seis anos galoparem a toda velocidade, montadas em cavalos sem sela nem manta, tendo o quadrúpede por freio somente uma tira estreita apertada na boca”.
Baguet destaca, a simbiose existente entre o gaúcho e o quadrúpede, ao narrar o momento em que o gaúcho precisa descer do cavalo para finalizar seu serviço. De acordo com o autor: “Curiosos observar, enquanto isto, os esforços do cavalo, sem cavaleiro, para manter o laço esticado, apesar dos estremecimentos do animal furioso. Acrescentamos também que a inteligência do cavalo é de muita ajuda ao cavaleiro, mas é preciso que tenha sido treinado com antecedência para este tipo de exercício”.
De acordo com o viajante austríaco Joseph Hörmeyer, na sua passagem pelo Rio Grande do Sul, em 1850, o gaúcho era “criado no meio dos rebanhos e vivendo quase que exclusivamente da carne deles, o campeiro é um cavaleiro audaz, seguro e hábil, que sabe manejar de forma excelente a espada e a lança, sendo sua arma mais terrível e companheiro inseparável o laço. O campeiro não conhece outra maneira de viajar a não ser a cavalo”. Hörmeyer usa a expressão campeiro ao se referir ao gaúcho.
A maioria dos viajantes que esteve pelo território sul-rio-grandense, no século 19, refere-se aos gaúchos como um ser irresponsável, que não se apegava à família, ao trabalho, era um ladrão de gado e passava a maior parte do tempo nos bolichos, bebendo, cantarolando e jogando.

Peão de estância
O gaúcho contemporâneo idealizado e materializado no Rio Grande do Sul resulta da unificação dos modos e costumes do peão de estância, trabalhador assalariado, que vendia a sua força de trabalho ao estancieiro, com o gaúcho ladrão de gado, contrabandista, sem chefe e sem governo.
Mas quem eram os peões de estância? Auguste de Saint-Hilaire e Richard Dreys tecem comentários sobre este personagem. Saint-Hilaire afirma que os peões de estância eram, na sua grande maioria, nativos guaranis. De acordo com Saint-Hilaire: “Os estancieiros desta região, não tendo escravos (sic), aproveitam a imigração dos índios para conseguir alguns que possam servir de peões. Os guaranis são, é voz geral, muito indicados para esse serviço. Montam bem, tem prazer nisso, e muitos sabem amansar cavalos. Sua docilidade é outra qualidade que os faz procurados para empregados das estâncias”.
Nicolau Dreys assinala que a “estância é servida por um capataz, e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os peões são negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gaúchos assalariados; sua ocupação consiste em velar sobre os animais, contê-los nos limites da estância, reuni-los, guardá-los e apartá-los quando é mister.
Os nativos guaranis, comunidades de caçadores, pescadores, horticultores e coletores haviam desenvolvido, anterior a fundação da Missões Jesuíticas, a prática agrícola e cultivavam a plantação de milho, mandioca, batata-doce e abóbora. Eram excelentes cavaleiros e, nas fazendas pastoris missioneiras eram os trabalhadores das lides do campo, responsáveis pelo amansamento e vigilância dos rebanhos. A técnica do doma em campo aberto, o churrasco, a boleadeira, o laço, o poncho, o tirador etc. Foram invenções dos cavaleiros missioneiros e pampeanos
Deduz-se nos relatos dos viajantes que esses nativos, com a destruição dos sete povos em meados do século 18, acabaram se estabelecendo nas estâncias exercendo o trabalho de peão. Entre os séculos 18 e 19, imigrantes de outras províncias, sobretudo mineiros e paulistas, e estrangeiros se estabeleceram nos atuais territórios do Rio Grande do Sul, resultando num contingente significativo de mão de obra para as estâncias. Saint-Hilaire relata sobre um Alferes mineiro que formou uma fazenda na Província de São Pedro e que possuía muitos filhos que provavelmente trabalhavam na fazenda do pai como peões. Os gaúchos se empregavam esporadicamente como peões de estância, quando estavam sem dinheiro.
O contato dos imigrantes interno e externo com os peões nativos, trabalhadores escravizados e com o gaúcho nas lides campeiras aproximou costumes e modos de vida diferenciados. Os primeiros já domesticados e estabelecidos nos limites da estância. O segundo levando uma vida sem chefes, sem leis e sem polícia, mas com uma habilidade enorme em laçar, caçar, courear, cavalgar, arrebanhar, vigiar etc., permitindo a apropriação por parte dos peões das qualidades dos gaúchos.


O mito do bom gaúcho
Possivelmente, o mito do bom gaúcho tenha surgido de uma forma paralela e concomitante, acompanhando a evolução de um outro mito da historiografia sul-rio-grandense: a democracia pastoril.
Deisi Lange Albech, em “Imagens do gaúcho: história e mitificação”, publicado em 1996, assinala que, de uma maneira geral, a historiografia tradicional do Rio Grande do Sul apresenta uma sociedade homogeneizada, onde a atividade pastoril imprime traços característicos especiais ao gaúcho, de simplicidade e igualdade. Onde todos cultivam os mesmo ideais, hábitos e costumes. Em um ambiente que não tem diferenças sociais, o esforço é trabalho comum entre latifundiários e seus servidores. Gerando homens leais e corajosos, dispostos a qualquer ato de heroísmo ou bravura pelo bem comum.
No contexto do desenvolvimento da sociedade pastoril latifundiária do século 19, onde o fazendeiro, dono da estância, era, de acordo com o mito da democracia pastoril, benevolente até mesmo com seus trabalhadores escravizados, aos poucos, de uma forma lenta e gradual, o mito ideológico do bom gaúcho foi sendo construído, desconsiderando as características do gaúcho histórico, suprimindo os seus defeitos e preservando as suas qualidades.
Decretou-se a morte do gaúcho real e, de suas cinzas, como uma fênix grega, renasceu o gaúcho sul-rio-grandense idealizado – sincero, franco, bondoso, honesto, patriótico, trabalhador etc. um exemplo de dedicação ao estancieiro.

O gaúcho idealizado
Segundo o escritor e jornalista Carlos Reverbel, o “gaúcho apareceu, na sua feição primitiva, em terras do rio da Prata. E começou a esboçar-se, como tipo social, a partir de 1536, data da primeira fundação de Buenos Aires”. Apesar de existirem, de acordo com Reverbel, traços comuns entre os gaúchos que vagueavam na região platina, como “o cavalo e o boi”; “a carne assada e o mate amargo”; “o couro e o sebo”; “o luxo dos aperos e outros apetrechos de montaria”; “indumentárias de uso comum - chiripá”; “suas armas – a faca, a lança e as boleadeiras” - etc., o autor afirma que existiam naquela região três tipos de gaúchos: o argentino, o uruguaio e o rio-grandense.
Carlos Reverbel utiliza às elaborações do tradicionalista Antônio Augusto Fagundes para escrever sobre os hábitos e costumes diferenciados dos gaúchos sul-rio-grandenses, em relação aos diferentes tipos de gaúchos que vagueavam pelos campos da região platina. Fagundes faz críticas ao surgimento, no campo musical, de “imitações platenses, uniformizantes no pior sentido. E de mau gosto. [...] Errônea visão de pangauchismo, fruto de um primarismo cultural que infelizmente reveste a atuação de certos tradicionalistas entre nós”.
No mesmo sentido, o engenheiro florestal Evaldo Munõz Braz, também defendendo o bom gaúcho – defensor da pátria, destemido, honrado, bondoso, valente, franco, honesto, etc. –, que ocupava os pampas do Rio Grande do Sul, faz críticas contundentes e ataca ferozmente os historiadores que andam em busca do gaúcho real: “A versão atual dos nouveaux pesquisadores/historiadores coloca tanto os gaúchos de antanho como os posteriores à segunda metade do século XIX como homens miseráveis, solitários e tristes, com indumentárias vestidas ao acaso, bóias frias daqueles tempos [...]. Mas na verdade o principal flagelo do gaúcho tem sido os próprios pesquisadores que na busca do gaúcho histórico, procuram depreciá-lo ao máximo”.
Escorando-se no mito da democracia pastoril, a figura do bom gaúcho sul-rio-grandense começou a ser construída na literatura romântica, em 1868, tendo o jornalista e professor Apolinário Porto Alegre como um dos principais construtores desse mito. Apolinário foi um personagem atuante na literatura sul-rio-grandense do século 19. Foi poeta, contista, romancista, dramaturgo, ensaista, pesquisador, crítico literário etc., e um dos principais fundadores do Partenon Literário. O Paternon literário foi fundado em 1868 por literatos liberais, republicanos e abolicionistas de Porto Alegre, entre eles Apolinário Porto Alegre e o romancista Caldre e Fião, com o objetivo de agregar intelectuais para discutir filosofia, política, cultura e comportamento e sociedade.
Deisi Lange Albech escreve que “Apolinário, seguindo o padrão romântico de idealização do Passado, cultuou os homens livres dos primeiros tempos do território rio-grandense. Na obra Paisagens, composta por seis contos, escritos entre 1867/74, os costumes locais são representados pela identificação com o meio geográfico. No conto O Monarca das Coxilhas, 1869, é exaltada a figura do bom cavaleiro e a superioridade do homem e da vida rural”.

Sem chefes, sem lei, sem polícia
Enquanto os gaúchos da banda de cá eram enaltecidos pelos literatos sul-rio-grandenses como sinônimo de liberdade, honradez, valentia, bravura, hospitaleiros, responsáveis, honrados, violentos apenas quando “lhe pisavam no poncho”, o gaúcho da banda de lá – Argentina, Uruguai e Paraguai – eram estereotipados como selvagens, violentos, assassinos, ladrões de gado, saqueadores, mulherengos, bêbados, jogadores, irresponsáveis etc. apesar de que, na sua origem, possuíssem as mesmas características.
Os gaúchos construíram um modo de vida próprio, um grupo social que vivia “sem chefes, sem leis, sem polícia”. A desobediência dos gaúchos das normas e regulamentações vigentes, sua relutância em se estabelecer definitivamente, despertou nos estancieiros da região platina, à vontade de enquadrá-los no modelo de organização social existente.
Sobre essa realidade a historiadora argentina Maria Sáenz Quesada, no seu livro “Los estancieros: El camino de poder”, publicado em 1980, comenta: “[…] caso de auténticos gauchos que em 1819 poblaban campos fiscales em la frontera. Reacios a servir a ningún patrón. Los estancieros siempre proponían idénticos remedios para controlarlas: cierre de los establecimientos de diversión los domingos, prohibición a los gauchos de jugar a los naipes [...] control de la venta de alcohol como otra de las atribuciones del estanciero prudente.”

Os bons, os maus e os feios
Na tentativa de encontrar uma justificação plausível para diferenciar o bom gaúcho sul-rio-grandense do mau gaúcho que vagueva pelos pampas da Argentina, Uruguai e Paraguai, criou-se um processo evolutivo de gaúcho: Gaudérios, guaso, gaúcho.
De acordo com Eduardo Jorge Bosco, no seu livro “El gaúcho a través de los testemonios extranjeros”, uma compilação de testemunhos “in loco”, de diversos autores, sobre o modo de vida dos gaúchos no Plata, os gaudérios são “unos mozos nascidos em Montevideo y en los vecinos pagos. Se hacen de uma guitarrita, que aprenden a tocar muy mal, y a cantar desentonadamente [...] y pasan las semanas enteras tendidos sobre um cuero, cantando y tocando” . A nomenclatura gaudério era usada pelo escritor argentino Concolorcorvo, no seu livro “El lazarillo de ciegos caminantes desde Buenos Aires hasta Lima”, para identificar o gaúcho, em 1773.
Os guasos, conceito que passou a ser usado em 1789, eram assim descritos: ”una bota de medio pie, unas espuelas de latón, de dos a tres libras de peso, que llaman nazarenas, um calzoncillo com fleco suelto [...], una chaqueta, un sombrero redondo, de ala muy corta con un barbiquejo [...] um poncho ordinário [...] si es invierno juegan o cantan unas raras seguidilhas, desentonadas [...] com uma desacordada guitarrilla”. O guaso é relatado por Espinosa nos seus “Estudios sobre las costumbres y descripciones interessantes de la América del sur”.
A figura do pré-gaúcho exerceu importante papel na construção do mito do bom gaúcho. Madaline Wallis Nichols lembra que o conceito gaúcho era muito vago no começo. Por ser vago açambarcava todos os errantes e vagos dos pampas platinos - gaudérios, changadores, guapos, gaúcho malo, gauchos e gaúchos – sob sua guarda. Em regra, os adjetivos que acompanhavam o personagem eram depreciativos.



Gaúchos diversos e difusos
De acordo com as descrições dos personagens feitas em “EL gaúcho a través de los testimonios extranjeros” todos eram nascidos na região platina, tocavam muito mal uma guitarra, cantavam desafinadamente, caçavam gado com suas boleadeiras e lanças, comiam carne assada, dormiam ao relento, eram bons cavaleiros, usavam botas, esporas de latão, sombrero, poncho, chiripá, ganhavam dinheiro com o contrabando de couro, não tinham patrão, não trabalhavam a terra, não sabiam o que era governo, freqüentavam pulperias onde jogavam, bebiam aguardente e se divertiam com as mulheres.
No entanto, diferenciou-se cada um deles: Os bons: gaúcho sul-rio-grandense. Os maus e os feios: gaudério, guapo, gaúcho malo, gaucho etc. Em A Formação do Rio Grande do Sul, Jorge Salis Goulart utiliza-se deste expediente de diferenciação entre os gaúchos da banda de cá e da banda de lá e escreve: “O ‘gaúcho malo’ é uma criação do pampa platino. Esse tipo ‘sui generis’ que briga tão somente pelo gosto de brigar, eterno inimigo da sociedade e da justiça, guerreiro indomável e aventureiro, dominado pelo vício do jogo e pelo amor da luta cruenta, herói anônimo dos Pampas, é peculiar às populações castelhanas [...] O rio-grandense é sóbrio e ordeiro”.
O historiador Mário Maestri, reporta-se a Dreys para interpretar este personagem dos pampas sul-rio-grandense e afirma que o gaúcho portava ‘xiripá’, ‘cingidor’, ‘poncho’, ‘faca’, ‘espada’, ‘boleadeira’, ‘laço’ e ‘pistola’ – quando podia comprá-la – e que fabricava parte desses implementos”. Assinala que esse ‘nômade’, de disposições ‘taciturna e apática’, passava o tempo à ‘dançar’, ‘jogar, tocar ou escutar uma guitarra’, procurando trabalho apenas quando não tinha ‘dinheiro’” .

Todos gaúchos platinos
Apesar dos criadores do mito do bom gaúcho sul-rio-grandense terem e continuarem se esforçando ao máximo para sustentá-lo, justificando esta tentativa de diferenciação em gaúchos diversos e difusos como gaudério, guapo, gaúcho malo, gaucho etc. todos adjetivos que identificam o gaúcho da banda de lá, ou seja, o mau gaúcho, criando, inclusive, numa concepção darwinista, a existência do pré-gaúcho, não há mais espaço para negar que o gaúcho do Rio Grande do Sul era o mesmo gaúcho da região platina.
O gaúcho real morreu com o cercamento dos campos em 1870. A cerca transformou o gaúcho em invasor. O roubo do gado, que nas palavras de Saint-Hilaire era considerado como “cousa legítima” passou a ser tratado como crime de abigeato passível de condenação pela justiça. O gaúcho ultrapassava a cerca, caçava o gado e era preso e condenado.
Aos poucos, com a evolução da atividade pastoril latifundiária na região do Prata, a estância foi engolindo o gaúcho real, reduzindo seu espaço vitalício, demarcando os pampas sul-rio-grandense e platino e, o seu lugar foi tomado pelo peão de estância, que possuía algumas características dos gaúchos como agilidade no laço, bons nas lides campeiras e no cavalo mas que não era o gaúcho, pois o peão de estância aceitava de uma forma passiva e submissa a exploração da sua força de trabalho pelo latifundiário.
Acordo historiográfico há quando se trata da origem do gaúcho. Não há acordo quando se trata da possível diferenciação existente entre as características do gaúcho da região platina com o gaúcho do Rio Grande do Sul. O gaúcho era o ser errante e vago que, no lombo de um cavalo, portando apenas suas armas para caçar e se defender, campeava pelos campos da região do Prata tendo uma vastidão ao seu alcance.

















Referências bibliogárficas
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SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul 1820-1821. Trad. Leonam de Azeredo Penna. Belo Horizonte: Ed. Da Universidade de São P

As origens da Academia Passo-Fundense de Letras

Paulo Monteiro

A Academia Passo-Fundense de Letras foi fundada no dia 7 de abril de 1938 com o nome de Grêmio Passo-Fundense de Letras e assumiu oficialmente a atual denominação a 7 de abril de 1961. A decisão de criar a entidade aconteceu numa reunião preliminar levada a efeito no dia 31 de março de 1938. Na oportunidade foi lavrado o seguinte documento: “ Nós, reconhecendo o valor que as letras têm na formação moral, cívica e intelectual do povo, e querendo contribuir á grandeza de nossa Pátria, pelo pensamento e pela idéia, resolvemos fundar um GRÊMIO LITERÁRIO, que tomará o nome de “GRÊMIO PASSOFUNDENSE DE LETRAS”, associação essa que esperamos venha a ser reconhecida como entidade oficial pela “ACADEMIA RIOGRANDENSE DE LETRAS”, conforme plano da ‘FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS” do Brasil.
A primeira reunião fica convocada para o dia séte, Quinta-feira, as 20,30 horas, no salão nobre da Prefeitura, para instalação definitiva do grêmio e eleição da diretoria provisoria.
PASSO FUNDO, 31 de MARÇO DE 1938.
Sante Uberto Barbieri, Arthur Ferreira Filho, Gabriel Bastos, Tristão Feijó Ferreira, Aurélio Amaral, Odette de Oliveira Barbieri, Celso da Cunha Fiori, Pedro Silveira Avancini, Herculano Araújo Annes, Nicolau de Araújo Vergueiro, Armando de Souza Kanters, Túlio Fontoura, João José Boeira Guedes, Francisco Antonino Xavier e Oliveira, Verdi De Cesaro, Daniel Dipp, Antônio Athos Branco da Rosa, Heitor Pinto da Silveira, Sabino Santos, Gomercindo dos Reis, Onildo Gomide, Píndaro Annes, Waldemar Camillo Ruas, Lucilla Schleder e Oscar Kneipp.”
No dia 7 de abril de 1938 foi realizada a sessão de fundação do Grêmio Passofundense de Letras, cuja até lavrada foi a seguinte:
Ata da sessão de fundação do “Gremio Passofundense de Letras”
Aos sete dias do mês de abril de mil novecentos e trinta e oito, no salão nobre da Prefeitura Municipal, às 20,30 horas, presentes a maioria dos que, anteriormente, resolveram fundar o “Gremio Passofundense de Letras”, levantou-se o Revdo. Sante Uberto Barbieri que propoz fosse aclamado presidente da sessão o snr. Arthur Ferreira Filho, prefeito municipal, com poderes de designar os auxiliares na Mesa. Assim aclamado presidente o snr. Arthur Ferreira Filho assumiu o logar principal na Mesa, convidando para secretario o snr. Verdi De Cesaro que ocupou o logar digo o seu posto. Agradeceu o Presidente a honra da escolha, saudando o Gremio pela auspiciosa sessão de fundação, prenuncio de um vasto descortino para o engrandecimento moral, civico e intelectual do mais importante dos municípios da Região Serrana.
Em seguida o Revdo. Sante Uberto Baribieri pediu a palavra e expoz o seu pensamento em torno da entidade literaria, que se estava fundando, dizendo o que o levava a congregar os intelectuais de Passo Fundo para a presente reunião, falando do pedido da “Academia Riograndense de Letras” para, como seu delegado, por em execução nesta cidade o plano da “Federação de Letras” do Brasil, bem como, traçou em linhas gerais as finalidades essenciais do Gremio. Serenados os aplausos que sucederam às ultimas palavras do orador, o Presidente passou a deliberar com a Assembleia os pontos que deveriam ficar assentados para o normal funcionamento do Gremio até que fosse organizado definitivamente de acordo com as normas que serão estabelecidas pela “Academia Riograndense de Letras”. Depois de uma longa troca de ideias ficou deliberada a eleição, por escrutinio secreto, de uma diretoria provisoria composta de um presidente, um vice-presidente, um secretario geral, um 1º. secretario, um 2º. secretario, um tesoureiro e um bibliotecario, cuja diretoria tomaria a direção do Gremio até a escolha da que fosse eleita de acordo com os estatutos que serão elaborados. Procedida, após, a eleição, foi verificado o seguinte resultado:
Para presidente:
Arthur Ferreira Fº. com 10 votos
Sante Uberto Barbieri com 6 votos
Para vice-presidente:
Gabriel Bastos com 9 votos
Sante Uberto Barbieri com 4 votos
Celso da Cunha Fiori com 1 voto
Armando de Souza Kanters com 1 voto
Para secretario Geral:
Sante Uberto Barbieiri com 14 votos
Verdi De Cesaro com 1 voto
Tristão Ferreira com 1 voto
Para 1º. secretario:
Verdi De Cesaro com 9 votos
Daniel Dipp com 2 votos
Tulio Fontoura com 2 votos
Aurelio Amaral com 1 voto
Athos B. da Rosa com 1 voto
Para 2º. secretario:
Lucila Schleder com 14 votos
Celso da Cunha Fiori com 1 voto
Sabino Santos com um voto
Para tesoureiro:
Daniel Dipp com 10 votos
Tristão Ferreira com 4 votos
Tulio Fontoura com 1 voto
Sabino Santos com 1 voto
Para bibliotecário:
Athos Branco da Rosa com 13 votos
Daniel Dipp com 2 votos
Tristão Ferreira com 1 voto
De acordo com o resultado apurado a diretoria provisoria ficou assim constituida: Presidente: snr. Arthur Ferreira Fº.; Vice-presidente: snr. Gabriel Bastos; Secretario Geral: Rvdo. Sante Uberto Barbieri; 1º. Secretario: dr. Verdi De Cesaro; 2º. Secretario: srta. Lucila Schleder; Tesoureiro: Daniel Dipp; Biblioecario: A. Athos Branco da Rosa.
Em seguida o Revdo. Sante Uberto Barbieri propoz que o Gremio comemorasse festivamente o proximo dia 14 de abril, dia Panamericano, em cuja solenidade seria empossada a diretoria provisoria. Aprovada a sugestão o snr. Presidente escolheu a seguinte comissão para tratar dos festejos do dia Pan-Americano: Revdo Sante Uberto Barbieri; dr Armando de Souza Kanters; srta Lucila Schleder; snr Tristão Ferreira; e dr. Verdi De Cesaro.
Para tratar da escolha de um predio proprio para a séde do Gremio o snr Presidente designou a seguinte comissão: snrs Gabriel Bastos, Tulio Fontoura, Tristão Ferreira e dr Armando de Souza Kanters. O snr Heitor Pinto Silveira pedindo a palavra propoz, e justificou, que fosse consignado em ata um voto de louvor ao Revdo Sante Uberto Barbieri, homenagem devida pela dedicação e entusiasmo que dispensara para a fundação do “Gremio Passofundense de Letras”. A proposta foi aprovada unanimemente com uma prolongada salva de palmas.
Às 22 horas, o Presidente declarou que ia encerrar a sessão, convidando todos os presentes para uma reunião terça-feira, 12 de abril, em local que seria designado. E, para constar lavrou-se esta ata, que vai por todos os presentes assinada.
Em tempo: Ao ser lida a presente ata a sua aprovação, pediu a palavra o snr Daniel Dipp para solicitar que ficasse consignada a proposta do snr Tulio Fontoura, que foi aprovada pela Assembleia, referente a doação do primeiro livro à biblioteca do Gremio, pelo Revdo Sante Uberto Barbieri, livro este de sua autoria. E para constar lavrou-se a presente ata que vai por todos os presentes assinada. Arthur Ferreira Filho, Gabriel Bastos, Sante Uberto Barbieri, Verdi De Cesaro, Lucila V. Schleder, Daniel Dipp, Heitor P. Silveira, Tristão F. Ferreira, Sabino Santos, Gomercindo dos Reis, Oscar Kneipp, Celso Fiori, e Tulio Fontoura.
Quando a Academia foi organizada o país vivia sob o Estado Novo, regime autoritário implantado por Getúlio Vargas, através do golpe de estado de 10 de novembro de 1937. Entre outras medidas “nacionalistas” Vargas implantou a nacionalização do ensino, obrigando que as aulas fossem ministradas apenas em português; impôs a censura à imprensa e à edição de livros; rígido controle sobre publicações em língua estrangeira e proibiu o uso de línguas estrangeiras em documentos e reuniões públicas. Isso gerou uma espécie de ufanismo entre vasta parcela da intelectualidade nacional, ainda sob o peso mítico do nacionalismo lingüístico e de um certo purismo à Rui Barbosa, também muito mais mítico do que real. Outra medida que exerceu grande influência sobre os intelectuais foi o fechamento dos partidos políticos, o que provocou um fenômeno parecido com o que aconteceu durante o período colonial: a discussão político-ideológica passou a ocorrer no interior de “clubes”.
É preciso que tenhamos consciência desses fatos para entendermos a criação do Grêmio Passo-Fundense de Letras. Também o estudo biográfico dos fundadores pode contribuir para o entendimento do processo. Pesquisas ainda preliminares têm sido realizadas pelo acadêmico Gilberto Cunha sobre Sante Uberto Barbieri, “idealizador” do Grêmio. Esse italiano, que saiu ainda menino de sua terra natal, antes de converter-se ao metodismo teria sido militante anarquista. Ora, os “clubes” sempre foram uma das formas preferidas dos anarquistas para a sua atuação intelectual.
O delegado da Federação das Academias de Letras do Brasil tinha conhecimentos suficientes para propor a organização de um “grêmio literário”, como forma de sobrevivência da “intelectualidade”. A mobilização de áulicos, como o então prefeito (na verdade, interventor) Arthur Ferreira Filho, em sua febre de integrar o elemento estrangeiro à civilização brasileira através da nacionalização do ensino, acabou favorecendo a iniciativa de Sante Uberto Barbieri.
À medida em que vamos nos aprofundando no estudo daqueles anos descobrimos algumas coisas interessantes, entre as elas a fundação de grêmios literários em cidades da região. Encontramos notícias de que existiram entidades do gênero em Carazinho e Sarandi, pelo menos. Acabaram não prosperando.
O próprio Grêmio Passo-Fundense de Letras funcionou ativamente entre 7 de abril e 19 de agosto de 1938. Embora se afirme que esteve inativo dessa última data até 16 de setembro de 1939, quando uma assembléia, presidida por Arthur Ferreira Filho, decidiu pela continuidade do Grêmio, o fato não é bem verdade. No dia 18 de janeiro de 1939, “na sede do Grêmio Passo-Fundense de Letras”, foi realizada “uma sessão extraordinária e solene de recepção do Exmo. Sr. Cel. Januário Coelho da Costa, brilhante literato patrício, que tem enriquecido nossa literatura pátria com os fulgores de seu talento e inteligência, através de versos firmes, reveladores de um poeta e beletrista de escol”.
Nessa primeira fase foram adotadas algumas medidas que teriam continuidade ao longo dos anos. Uma delas a apresentação de um trabalho literário, a cada reunião por um membro do grupo. Essa proposta foi levada a sério durante muitos anos, dela resultando os livros “Atlântida” e “Aborígenes Brasileiros”, de Gabriel Bastos. Alguns opúsculos do historiador Antonino Xavier e Oliveira, publicados na década de 1950, também surgiram através dessa horária literária, proposta por Sante Uberto Barbieir, já na segunda reunião do Grêmio, a 12 de abril de 1938. A segunda media foi a formação de uma comissão constituída por Gabriel Bastos, Túlio Fontoura, Tristão Ferreira e Armando de Souza Kanters, para conseguir o prédio do Clube Pinheiro Machado como sede própria do Grêmio. Só não foi possível porque no local funcionava o Tiro de Guerra 225, mas quando o mesmo fosse recolhido à caserna, o edifício passaria a ser usado pela associação literária.
O Grêmio Passo-Fundense de Letras iniciou suas atividades a pleno vapor. Há registros de diversas publicações de seus integrantes em “O Nacional” e “Diário da Manhã” sobre os mais diversos assuntos. Disso cuidava uma comissão de publicações presidida por Tristão Ferreira.
No dia 29 de abril foram lidos os Estatutos do Grêmio, que transcrevemos a seguir:
“Estatutos do Grêmio Passofundense de Letras
Capítulo I
Do Grêmio, sua sede e fins
Artigo 1º - O Grêmio Passofundense de Letras, instituído na cidade Passo Fundo, Estado do Rio Grande do Sul, a 7 de abril de 1938, terá por sede a mesma cidade, e por fins, de acordo com os presentes estatutos, despertar e promover o interesse pela cultura literária, e estimular o sentimento de brasilidade e o civismo da população do município a que pertence.
Artigo 2º - Entre outros meios, que poderão ser sugeridos a exame e adaptação, procurará ele realizar tais objetivos pelos seguintes:
& 1o – Conferências públicas, pelos sócios efetivos ou personalidades de valor literário ou científico, em trânsito pela cidade, à razão de uma por mês.
& 2º - Franqueamento de sua biblioteca a quantos se interessarem pela leitura, até a fundação de instituto municipal do gênero.
& 3º - Manutenção, à medida do possível, de cursos gratuitos de alfabetização, destinados às classes menos favorecidas da fortuna.
& 4º - Recepção oficial a artistas e intelectuais de merecimento, que visitarem o município.
& 5º Comemoração solene das grandes datas da nacionalidade.
& 6º - Promoção de concursos literários anuais sobre temas diversos e entre diferentes classes: sócios efetivos, escolares, etc.
Artigo 3º - As atividades normais da casa serão norteadas por um regimento interno, que será considerado parte integrante destes estatutos.
Capítulo I I
Dos sócios
Artigo 4º - Compor-se-á o Grêmio de vinte e cinco sócios efetivos, todos residentes no município, e de um número ilimitado de filiados, composto de pessoas que, não podendo ou não desejando pertencer à primeira categoria, todavia queiram, de qualquer maneira, emprestar solidariedade à ação dele.
Artigo 5o – Uma vez instalado com aqueles que tiverem aderido a iniciativa de sua fundação, os claros que porventura existirem ou a ser abertos vierem, serão preenchidos pelos candidatos que, para isso, forem propostos à assembléia geral por três sócios efetivos e apresentarem credenciais de cultura, comprovada por atividade nas letras, ou exercício de profissão ou ocupação de caráter intelectual: advogado, médico, engenheiro, professor, sacerdote, estudante, funcionário público em cargo de responsabilidade, etc.
Art. 6º - A admissão de sócios filiados se processará pelo voto da assembléia efetiva, mediante proposta firmada por um sócio dessa categoria.
Art. 7º - Consuma-se a posse do sócio efetivo com o seu comparecimento, pela primeira vez, aos trabalhos e prestando ele, aí, o compromisso regulamentar.
Art. 8º - Sempre que em exercício da atividade literária, os sócios efetivos deverão declinar a sua qualidade de membros do Grêmio.
Art. 9o – Os sócios, efetivos ou filiados, serão sujeitos a contribuição mensal de 2$000 para aqueles e de 1$000 para estes.
Art. 10º - Serão circunstâncias caracterizantes da vaga de sócio efetivo: a) o falecimento do sócio; b) expressa declaração de renúncia; e) falta de comparecimento, sem apresentação de justificativa, a oito sessões seguidas.
Art. 11º - Não responderão os membros do grêmio, nem direta nem subsidiariamente, pelas obrigações que a administração dele contrair no exercício das respectivas funções.
Capítulo III
Da Administração
Art. 12º - Será o Grêmio regido por uma diretoria eleita anualmente na Segunda quinzena de dezembro, a qual poderá ser reeleita e constará de um presidente, um secretário geral, um tesoureiro e um bibliotecário, além dos quais o presidente nomeará, por livre escolha sua, um primeiro e um segundo secretários, um sub-tesoureiro e um sub-bibliotecário.
Art. 13º - Como supremo mandatário do Grêmio, caberá ao presidente dirigir-lhe os trabalhos e o representar em juízo e nas relações com terceiros.
Art. 14o – Ao secretário geral, substituto legal do presidente nos impedimentos respectivos, estará afeta a superintendência de todos os serviços indispensáveis à boa regularidade dos trabalhos do Grêmio.
Art. 15o – Ao tesoureiro incumbirá a guarda e administração do patrimônio social, de acordo com os demais membros da diretoria.
Art. 16º - Ao bibliotecário competirá a direção, organização, desenvolvimento e conservação da biblioteca.
Art. 17o – Ao 1º secretário caberá a organização da correspondência expedida e recebida, bem como a responsabilidade do expediente interno da secretaria.
Art. 18o – O 2o secretário encarregar-se-á da guarda do livro de presença às reuniões e da lavratura e leitura das atas das mesmas.
Art. 19º - Aos sub-tesoureiros e sub-bibliotecários competirá, quanto possível e de acordo com as exigências do serviço, auxiliar, respectivamente, ao tesoureiro e ao bibliotecário, bem como substituí-los nos impedimentos que tiverem.
Art. 20º - O Grêmio funcionará com a presença de cinco membros e deliberará com a da Terça parte dos sócios efetivos em pleno gozo dos direitos sociais.
Capítulo IV
Disposições gerais
Art. 21º – O Grêmio poderá solicitar e receber auxílios oficiais ou particulares, na esfera municipal, e aceitar encargos referentes ao lato cultivo das letras nacionais.
Art. 22º - É-lhe vedada, em absoluto, qualquer manifestação de caráter político ou religiosos, porém concederá a seus sócios, sob a responsabilidade pessoal deles, a pleniposse da respectiva liberdade de pensamento no exercício das suas aptidões e tendências espirituais.
Art. 23º – Para que possa ser extinto, será necessário que isso, harmonicamente, delibere a maioria absoluta de seus membros efetivos, dando destino aos bens acaso existentes pela forma que julgar preferencial.
Art. 24º - A diretoria que for eleita de acordo com os presentes estatutos terá findo o seu mandato a 31 de dezembro do corrente ano, circunscrevendo-se o das outras ao ano civil para que forem eleitas.”
A assembléia decidiu nomear uma comissão formada por Antonio Xavier e Oliveira, Verdi De Césaro e Arthur Ferreira Filho para revisarem os estatutos. Na sessão seguinte ( 6 de maio) foi apresentado um relatório da comissão e aprovada proposta de Sante Uberto Barbieri para que a diretoria continuasse o seu mandato até 31 de dezembro daquele ano.
Esses estatutos continuariam sendo discutidos e redescutidos até que foram definitivamente aprovados a 3 de outubro de 1939, já na atual sede da Academia Passo-Fundense de Letras, onde o Grêmio foi “reorganizado”.
Aliás, essa questão da reorganização é uma questão problemática. Aqueles que se dedicaram a estudar a história da Academia Passo-Fundense de Letras, seguindo o que consta em diversos documentos do sodalício, afirmam que a entidade esteve inativa entre19 de agosto de 1938 e 16 de setembro do ano seguinte. Entretanto, a 18 de janeiro de 1939 aconteceu uma “sessão extraordinária e solene de recepção do Exmo. Sr. Cel. Januário Coelho da Costa, brilhante literato patrício, que tem enriquecido nossa literatura pátria com os fulgores de seu talento e inteligência, através de versos (...), reveladores de um poeta e beletrista de escol”.
O Regimento Interno foi aprovado em 20 de outubro do mesmo ano.
A definição de ordem e numeração das cadeiras foram decididas em 28 de outubro, com a seguinte ordem de cadeiras: 1 – Athos Branco da Rosa; 2 – Antônio Bitencourt de Azambuja; 3 – Armando de Souza Kanters; 4 – Arthur Ferreira Filho; 5 – Brasileiro Bastos; 6 – Celso da Cunha Fiori; 7 – Daniel Dipp; 8 – Francisco Antonino Xavier e Oliveira; 9 – Gabriel bastos; 10 – João José Boeira Guedes; 11 – Odalgiro Gomes Corrêa; 12 Odete Barbieri; 13 – Onildo Gomide; 14 – Oscar Kneipp; 15 – Pedro dos Santos Pacheco; 16 – Píndaro Annes; 17 – Sabino Santos; 18 Sante Uberto Barbieri; 19 – Tenack Wilson de Souza; 20 – Túlio Fontoura; 21 – Tristão Feijó Ferreira; 22 – Waldemar Ruas; 23 – Verdi De Cesaro.
A organização do Grêmio Passo-Fundense de Letras foi oficializada pela Academia Rio-Grandense de Letras e o presidente da mesma, De Paranho Antunes, foi recepcionado pelos intelectuais passo-fundenses no dia 24 de junho, oportunidade em que foi saudado por Armando de Souza Kanters.
O fato de que, na Região, apenas o Grêmio Passo-Fundense de Letras tenha conseguido sobreviver leva à conclusão de que esse tipo de entidade era movida por fatores conjunturais, passageiros. Creio que possam ser encontradas nas propostas políticas do Estado Novo. Uma vez extinto o “regime” acabou o movimento gremista. Somente sobreviveu em Passo Fundo porque o município se consolidava como centro político e econômico regional. Era a única cidade do Norte gaúcho a dispor de uma “elite intelectual”.

O Prédio da Academia Passo-Fundense de Letras

Paulo Monteiro

O primitivo prédio da Academia Passo-Fundense de Letras, situado na Avenida Brasil 792, foi construído em 1912 pelo Clube Pinheiro Machado, entidade social que congregava os adeptos do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), liderado então por Antonio Augusto Borges de Medeiros, presidente (governador) do Estado. Do edifício original, hoje, resta muito pouco, principalmente a fachada, em estilo neoclássico, segundo os arquitetos Dávio Duro e Jeanine Starhn, que elaboraram um laudo de vistoria no dia 3 de abril de 1990.
O mesmo laudo apresenta algumas informações interessantes sobre a arquitetura original da edificação. Suas fundações eram em pedras de basalto irregular, diretas e rasas, e encontravam-se em relativo estado de conservação, considerando alguns pontos de infiltração de água das chuvas.
Quatro anos antes (2 de abril de 1986) o prédio já merecera análise de uma comissão de técnicos: arquitetos Antônio Frediani da Fonseca e Fernando Weck dos Santos e o engenheiro civil José Luiz Kröner Bicca, esclarecendo que a técnica construtiva utilizada era de alvenaria autoimportante de tijolos maciços. As paredes do subsolo tinham espessura de 60 com em tijolos maciços de ótima qualidade, a maioria sem reboco, e as paredes do pavimento principal apresentavam uma espessura de 45 cm.
Afirmavam que “É flagrante em nossa cidade, o desrespeito que a comunidade em geral e os meios empresariais em particular, têm com seu próprio patrimônio histórico-artístico-cultural. Parece até que existe vergonha de seu passado, tal é o ímpeto de destruir os testemunhos de sua própria história”. E concluíam pela viabilidade técnica de recuperar o prédio. Poucos anos depois aquele desrespeito de que falavam os técnicos, somado à omissão das autoridades constituídas, levavam a que apenas a fachada do prédio da Academia Passo-Fundense de Letras apresentasse condições de preservação.
Como vimos, o prédio foi construído em 1912, mas só quatro anos depois, a 31 de maio de 1916, Basilico Lima, então presidente do Clube Pinheiro Machado, e os proprietários do terreno, Herculano Trindade e sua mulher Lucinda de Lima Trindade, formalizaram a negociação. Pelo documento, sabemos que o imóvel onde hoje funciona o Teatro Múcio de Castro já existia, e era um teatro. Para o outro lado (“poente”), onde atualmente se localiza uma loja comercial, era um terreno baldio, dos mesmos vendedores, que ficaram autorizados a edificarem, aproveitando a parede lateral do Clube, “não podendo estabelecerem forno ou cozinha ligado à mesma parede”.
O prédio serviu para diversas atividades. De início, ali se reuniam os homens que dominavam a política passo-fundense, além de realizarem bailes e reuniões sociais. Devem ter traçado planos para enfrentar a Revolução de 23, que “estourou” em Passo Fundo, mais precisamente num local conhecido como “Capão Alto”, entre esta cidade e do distrito de Carazinho. Seu líder foi o deputado estadual Arthur Caetano da Silva, representante dos libertadores passo-fundenses, antigos federalistas, na Assembléia Estadual.
Quando, em janeiro daquele ano, os revolucionários cercaram Passo Fundo, o prédio serviu de trincheira para as forças legalistas. Acossados pelos libertadores, os antigos pica-paus e as foças do próprio Exército Brasileiro tiveram de abandonar o quartel do Exército, protegendo-se no Clube Pinheiro Machado, um dos últimos baluartes da legalidade.
Entre 1929 e 1932 serviu para a formação de professoras, com a instalação da Escola Complementar, gênese da atual Escola Estadual de Ensino Médio Nicolau de Araújo Vergueiro. Após abrigar algumas repartições públicas, passou a sediar o Grêmio Passo-Fundense de Letras, fundado no dia 7 de abril de 1938, transformado em Academia Passo-Fundense de Letras, a 7 de abril de 1961. A Biblioteca Pública de Passo Fundo ali atendeu ao público até meados de 1973, quando foi transferida para o prédio onde se localiza. Como se vê a história do prédo-sede da Academia Passo-Fundense de Letras se confunde com mais da metade da história do Município de Passo Fundo. Ninguém pode discutir a importância desse patrimônio.
Os acadêmicos sempre sonharam que a propriedade do edifício passasse para o sodalício. Tanto sonharam – e lutaram – que no dia 17 de dezembro de 1971 Frederico Garaeff Fº, Apparício Lângaro, Almiro Ilha, Americano Bastos, Henrique Scarpelini Ghezzi, Ernesto Formigheri, Ruy Vergueiro, Bazilio Tassi, Altthonobre Ferreira da Luz e Túlio Fontoura, remanescentes do Clube Pinheiro Machado, doaram o terreno e o prédio à Academia. Enfim, a confraria literária dispunha de sede própria.
O sonho da sede própria, agora, era realidade, mas o pesadelo da recuperação continua até hoje. É um longo e tenebroso pesadelo, com uma característica vergonhosa: dilapidar o patrimônio da Academia e consumir recursos públicos. E já dura, comprovadamente, mais de 43 anos.
No dia 3 de janeiro de 1964 o jornalista e acadêmico Túlio Fontoura comunicava aos seus pares que convidara o deputado Antonio Bresolin “para consignar verba para a futura sede da Academia e da Biblioteca Municipal”. A 6 de novembro do mesmo ano o parlamentar já havia destinado verba à Academia sendo designado o consócio Túlio Fontoura para recebê-la. Em 28 de maio de 1965 há registro de que a verba de Cr$ 200.000,00 (duzentos mil cruzeiros) não tinha sido recebida, chegando a ser contratado o Escritório Jurídico Dr. Carlos Leite Costa, de Porto Alegre, para cobrá-la. Não se encontra registro de que a Academia tivesse recebido o valor destinado pela Câmara dos Deputados.
Como se viu, a preocupação em legalizar a posse do prédio, marchava lado a lado com a de sua recuperação.
Em princípios de 1974 Romeu Pitham, presidente da Academia, manteve entendimento verbal com o prefeito Edú Vila de Azambuja, posteriormente aprovado pelo plenário da associação, no sentido de que fosse liberado o prédio do sodalício para que, juntamente, com os outros próprios municipais limítrofes fosse alienado. Em contrapartida o Executivo Municipal permitiria o uso exclusivo e permanente de um gabinete para a Presidência e Diretoria da Academia; uma sala de reuniões com acomodações para, pelo menos, 50 pessoas; um auditório para, no mínimo 100 pessoas e instalações para biblioteca. Exigia, ainda moradia para Dorival Guedes, velho servidor municipal, que ocupava o prédio da academia há mais de 30 anos. A proposta, de 6 de maio de 1974, não saiu do papel.
Em 1978 a “empresa CASIL LTDA., ao custo de Cr$ 160.000,00”, realizou a reforma do prédio. Para conseguir esses recursos o então presidente da Academia, Benedito Hespanha, foi autorizado a vender para a prefeitura parte do terreno pelo exato preço dos consertos – cento e sessenta mil cruzeiros. A reforma provocou otimismo entre os acadêmicos, conforme se pode comprovar consultando atas e documentos da época.
A alegria, porém, não durou muito tempo. Infiltrações de águas pluviais, cupins nas madeiras, envergamento do madeirame que dava sustentação ao teto, e outros problemas começaram a aparecer. Menos de dois anos depois de concluídas essas reformas, eis o que consta em ata de 2 de agosto de 1980: “O presidente fez uma exposição informando os sócios sobre a precariedade das paredes do prédio, porquanto estão cedendo e até rachando. Disse que sobre esse assunto já falou com o senhor prefeito municipal, Dr. Firmino Duro, sendo que ele, em resposta prometeu dar a mão-de-obra, cimento e pedras e fazer o vigamento de concreto, a fim de melhorar a situação do prédio”. Essa promessa foi feita há mais de 25 anos...
Os problemas no prédio foram se agravando, apesar das insistentes gestões junto às autoridades constituídas, até que a Academia precisou abandonar sua sede, passando a reunir-se aqui e acolá. Chegou ao ponto de ser “despejada”, juntamente com o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Passo Fundo, de uma sala alugada pela Prefeitura à Universidade de Passo Fundo.
Cansados de recorrer ao poder público municipal os acadêmicos procuraram outras soluções. Uma delas foi alienar o terreno restante para empresa de construção civil que erguesse um edifício de vários andares no local deixando parte do imóvel para a Academia. Era época de explosão imobiliária em Passo Fundo, o que favorecia a idéia. Foi feita uma convocação pública a empresas interessadas. Chegou até ser elaborado, com data de 7 de janeiro de 1985, um termo de compromisso prévio entre comissão de acadêmicos, tendo à testa o então presidente Paulo Renato Ceratti, e diretores da Tecnicon, Engenharia Técnica e Construções Ltda. A proposta definia que numa área de 193,83 m2 a Academia disporia de auditório, local especial para 30 cadeiras, secretaria, biblioteca, sala para alugar, subsolo e cozinha. Dependia de posterior aceitação pela assembléia geral dos acadêmicos, não existindo registro se essa assembléia se reuniu.
O certo é que a idéia não prosperou e inexistem assentamentos sobre os reais motivos pelos quais a parceria com a iniciativa privada foi por águas abaixo.
Em outubro de 1988 o prefeito Fernando Machado Carrion oficiava sobre a inclusão de Cz$ 10.000.000,00 (dez milhões de cruzados), no orçamento municipal, para a reforma do prédio.
A década de 1990 foi marcada por intensas polêmicas envolvendo o prédio da Academia Passo-Fundense de Letras. No dia 10 de março daquele ano, reunidos em assembléia geral, após ouvirem arquitetos e engenheiros, os acadêmicos tomaram uma atitude extrema: aprovaram, por unanimidade, a demolição do prédio, cujas paredes começavam a ruir sobre pessoas que transitavam na calçada fronteira. Arquitetos consultados pelo sodalício e engenheiros da construção civil foram de parecer no sentido de que nem mesmo a fachada do prédio poderia ser preservada. Decidiram, ainda, conferir plenos poderes à Diretoria para decidir sobre a forma de demolição, a destinação do material, o ajuste de preços, a contratação de empreiteiras, e demais atos necessários para a demolição. Quanto à construção do novo prédio ficou para ser decidida pela assembléia geral em ocasião oportuna.
No dia 26 de março o então presidente Irineu Ghelen entregou ao jornalista e advogado Celestino Meneghini, chefe do Gabinete do Prefeito, requerimento solicitando “licença para construir um tapume de madeira sobre a calçada, isolando com isto as pessoas dos riscos permanentes que o prédio oferece e, evitando que os responsáveis sejam processados criminalmente por crime culposo”, bem como, “licença para reforma provisória no telhado, uma vez que existem diversas infiltrações d’água, capazes de agravar cada vez mais a situação da coisa”. Aquela autoridade municipal apôs o seguinte despacho ao documento: “Recebido. Encaminhado p/ Alvará mediante autorização precária para providências urgentes”.
A licença acabou sendo concedida em 25 de maio, mas a confusão até aí foi enorme.
Foi uma gritaria geral na Cidade. Apareceu gente e instituição de todo lado querendo salvar o prédio. Alguns acadêmicos acabaram envolvidos num verdadeiro escândalo, acusados, agora sim, de cometerem crime contra o patrimônio histórico-cultural-arquitetônico do Município.
O então prefeito, Airton Lângaro Dipp, filho de um dos fundadores do Grêmio Passo-Fundense de Letras, e a Câmara de Vereadores movimentaram-se. O prédio foi tombado pelo Patrimônio Histórico.
O Ministério Público Estadual, em 24 de abril de 1992, instaurou inquérito sobre o assunto, movendo o processo nº 021194011751 da 5ª Vara Cível da Comarca de Passo Fundo. A Academia conseguiu ser retirada do processo. Mais de 15 anos depois de aberto o inquérito o caso não teve solução. As últimas administrações municipais assinaram acordos na Justiça, que não foram cumpridos.
Sobre esse processo, há tempos, foi encaminhado ao vereador Juliano Roso resposta a um pedido de informações, onde consta a seguinte informação assinada por um dos procuradores jurídicos do Município: “PÁGINAS – 709 – Juiz – 45 dias para que todos os itens constantes no plano de prevenção contra incêndio sejam adotados. Sob pena de imediata interdição. (13/05/2004).
Ao final, foram cuminadas multas a fls. 440 50 (cinqüenta) salários-mínimos por dia; fls. 560 10 (dez) salários-mínimos por dia fls. 613 10 (dez) salários-mínimos por dia”.
O Município que tinha de concluir as obras até 30 de dezembro de 1997, ainda não o fez. Apenas a fachada foi reconstruída. E, parcialmente, o andar destinado à Academia. Para marcar a posse do prédio, os acadêmicos promoveram em 7 de abril de 2002, um ato simbólico.
No início de 2005 várias reuniões foram realizadas entre integrantes da atual administração municipal e os acadêmicos. No dia 15 de janeiro a Academia recebeu uma visita da secretária Tânia Cogo, então responsável pela Cultura. No dia 4 de março os secretários Giovani Corrallo, do Planejamento, Alberi Grando, da Saúde, o advogado Ari Reinheimer, assessor técnico do Planejamento, e Vanessa Palauro, arquiteta. No dia 12 de março, nova visita ao prédio da Academia. Desta vez Giovani Corrallo, Alberto Poltronieri, da Administração, e Euclides Serápio Ferreira, procurador geral do Município. Propuseram que os andares inferiores do prédio fossem liberados para uso da secretaria Municipal da Saúde, que estaria sendo obrigada a deixar o prédio do Hemopasso. Acenou-se com a idéia de que a Academia se transferisse para o prédio do antigo Quartel do Exército onde seria construído um centro cultural. Os acadêmicos não aceitaram a idéia. Nova reunião, desta vez na Prefeitura, três dias depois. Presentes os secretários municipais Giovani Corrallo, Alberto Poltronieri, Euclides Serápio Ferreira, César Bilibio, da Fazenda, e Adirbal Corrallo, vice-prefeito, além dos acadêmicos Welci Nascimento, Meirelles Duarte, Paulo Monteiro, Helena Rotta de Camargo, Santo Verzelletti, Santina Rodrigues Dal Paz e Jurema Carpes do Valle. Decidiu-se pelo início imediato das obras de conclusão do prédio e com a elaboração de uma pré-projeto para a ampliação da área legada à Academia. Tudo foi cumprido, menos o início das obras.
O que se nota é que os mesmos vícios de reformas anteriores logo apareceram: infiltrações de águas pluviais, rachaduras nas paredes. Ainda em maio de 2008, ocorrem problemas de infiltração de águas pluviais e goteiras, indicando que precisam ser feitos reparos urgentes, antes mesmo da conclusão da obra. Caso contrário, o prédio vai ruir de novo.
No dia 7 de abril de 2008 a Academia Passo-Fundense de Letras comemorou solenenemente os seus 70 anos de existência. Estiveram presentes as mais importantes literanças políticas e culturais do município, como o prefeito Airton Lângaro Dipp, o presidente da Câmara de Vereadores, Luiz Miguel Scheis, e a professora Lourdes Canelles, representando a comissão organizadora das Jonradas Nacionais de Literatura.
E o prédio que, há mais de quatro décadas, consome recursos públicos e há mais de 15 anos é objeto de uma ação judicial patrocinada pelo Ministério Público Estadual, não estava ainda concluído.

As tropas de mulas

Paulo Monteiro

Pedro Ari Veríssimo da Fonseca é autor do livro Tropeiros de mula: a ocupação do espaço, a dilatação das fronteiras, obra fundamental para o entendimento do tropeirismo. Alguns autores acadêmicos, como João Vicente Ribas em A representação cultural gauchesca no município de Passo Fundo, se opõe, com justa razão, no meu entendimento, a confusão do serrano rio-grandense do sul ao gaúcho ou à substituição do primeiro tipo humano pelo segundo. Veríssimo da Fonseca é, porém, o primeiro a salientar as diferenças, para ficar apenas em solo rio-grandense do sul, entre o serrano (biriva), o missioneiro e o fronteiriço, descendente do gaúcho ancestral. Ao preservar a memória dos últimos tropeiros, Pedro Ari Veríssimo da Fonseca prestou um serviço inestimável à História e à Sociologia do Rio Grande do Sul.
Hoje, neste ano da graça de 2008, ao percorrermos menos de 30 quilômetros reclamamos de alguns buracos no asfalto, da falta de sinalização, do acostamento mal conservado. Era a distância máxima percorrida em um dia de caminhada pelas tropas de mulas cargueiras, segundo clássicos que escreveram sobre o assunto. Imaginemos o que era palmilhar essas quatro léguas (26,4 quilômetros), nos tempos pretéritos, em lombos de burros de cangalha, cada um deles carregando dez arrobas de carga, em terrenos íngremes. E as estradas daquela época eram de chão batido, conhecidas como picadas, com pedras apontando no meio.
Os tropeiros, que construíram as primeiras cidades dos planaltos de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, foram os homens que abriram as estradas do Sul. Geralmente eram caminhos usados pelos avôs e bisavôs índios desses mamelucos, descendentes de antigos bandeirantes, “preadores de índios e prenhadores de índias”, para usar uma expressão consagrada pelo uso de muitos.
Mulas e burros, na verdade o termo correto é mulos, são produtos do cruzamento da égua com o jumento, mais conhecido como burro incho. Burro inchó é o aportuguesamento do espanhol “burro echor”, o jumento usado para “fazer” burrinhos. Daí “hechor”, fazedor, para ser mais exato na língua de Camões. Menos falado, mas igualmente presente nas tropas era o bardoto, híbrido do bagual com a jumenta. Mais aproveitado como burro de cangalha ou burro de carga, por apresentar mais as características físicas do pai. Verdade que já foi apresentada por Charles Darwin na sua quase sesquicentenária Origem das Espécies, no capítulo que dedicou (VIII, nas traduções baseadas na edição príncipe; IX, nas que seguem a quarta edição inglesa).
Burros e mulas de cangalha, como já ficou dito, percorriam uma média de três a quatro léguas por dia, transportando entre oito e dez arrobas. Isto quer dizer que a carga de um desses animais variava entre 120 a 150 quilogramas. Eram lotes entre sete e onze bestas. Às vezes, para vencer caminhos mais perigosos ou locais onde ocorriam ataques dos índios, como no Mato Castelhano e no Mato Português, juntavam-se vários grupos sob a liderança de um tropeiro mais experiente ou corajoso.
É possível que esse “vaqueano” mantivesse alguma ligação com os índios. É o caso de José Domingos Nunes de Oliveira, no Mato Castelhano. Reconhecido pelo pala branco, os caingangues deixavam passar livremente as topas nas quais ele ia como madrinheiro. Aliás, madrinheiro é aquele que montava a égua ou mula madrinha. Muitas vezes era uma burra, com arreios vistosos, e um tilintante cincerro (sineta) ao pescoço.
As tropas viajavam em duas etapas. Logo ao clarear do dia, fazendo uma longa parada para o almoço e o descanso dos animais, e uma segunda mais perto do entardecer. Nos pousos, nome que se dava aos locais de parada, os fardos eram descarregados, ordenadamente. As bestas recebiam cincerros e eram soltas no pasto. Os lugares onde as cargas ficavam depositadas recebiam o nome de “suadouros”, pois ali o suor dos animais, depositado sob os cargueiros, secava. Assim, acostumavam-se ao bimbalhar do cincerro e a seguir a madrinha.
Nas primeiras noites, os animais que formavam uma tropa de cargueiros ficavam na corda. Depois de acostumados ao grupo e sem risco de que retornassem à querência é que ficavam num potreiro, geralmente um rincão costeado por rios ou mato. Era comum que nesses locais fossem construídas taipas de pedras para a contenção dos animais.
Antes e adiante de todos seguia o cozinheiro. Levava o feijão cozido, na noite anterior. Era esquentado no local do almoço, dando origem ao famoso “feijão tropeiro”. O arroz, descascado no pilão, cozido junto com guisado de charque, hoje conhecido como “arroz de carreteiro”, era outro dos alimentos peculiares dos tropeiros. Muitas vezes uma boa carne de animal silvestre contribuía para uma lauta refeição. Não se perdia nadada, tanto que as cores preta e branca do feijão e do arroz, deram o nome de carijó à mistura de todas as sobras. É, para surpresa de alguns doutores de linhas tortas, um prato típico da cozinha passo-fundense.
Estudos etnográficos demonstram que os alimentos variavam de acordo com o que era produzido nas regiões por onde as tropas passavam. Aqui, consumia-se a farinha de mandioca; ali, onde o solo não favorecia o plantio daquele tubérculo, empregava-se a farinha de milho. Neste último caso, o cuscuz acompanhava o café. Nos últimos tempos, pesquisadores têm traçado um mapa da alimentação tropeira.
O tropeirismo fez surgirem muitas fortunas. Tropeiros, como João da Silva Machado, agraciado com o título de Barão de Antonina, foram elevados à nobreza imperial. O Império afagou o ego desses novos ricos – e muito oportunistamente a influência de alguns tropeiros pondo em prática o “dividir para reinar”.
Acontece que à medida que enriqueciam, os tropeiros deixavam de viajar com suas tropas. Seguiam atrás delas, aproveitando para bem relacionarem-se com autoridades e outras pessoas de condição social mais elevada. Alguns deles iam à Corte, fato que aproveitavam para ostentar importância por onde passavam.
No retorno de centros maiores traziam encomendas, especialmente, panos finos e jóias. Alguns deles montavam casas de comércio, em suas cidades de origem, tornando-se “capitalistas”, como se dizia à época, elogiosamente. E até banqueiros, recebendo em guarda dinheiro das pessoas com que se relacionavam ao longo dos caminhos.
Hábeis condutores de tropas levavam para Sorocaba e municípios adjacentes os híbridos comprados nas Missões, na Fronteira Oeste e na Mesopotâmia Argentina. Do planalto paulista, após um período de invernação, em que recobravam as forças e eram amansados, divididos em tropilhas, os muares eram negociados em lugares distantes, num semicírculo que ia do Rio de Janeiro a Mato Grosso.
Os animais com maior saúde, fortaleza e resistência destinavam-se ao transporte de cargas. Eram os mais procurados. Aqueles que apresentassem mais beleza de formas, para usar expressões clássicas de Pandiá Calógeras, eram destinados à montaria.
Escrevi acima que as mulas cargueiras perfaziam um percurso diário que mediava de três a quatro léguas diárias. Se não levassem cargas, também eram conhecidas como tropas montadas e as marchas diárias variavam de seis a sete léguas. Distância fácil de calcular sabendo-se que uma légua corresponde a 6.600 metros lineares.
Para que se faça idéia das dificuldades enfrentadas pelos tropeiros vou resumir o relatório de uma tropeada, concluído por Reinaldo Silveira, em Ponta Grossa, no dia 19 de novembro de 1891.
Ele saiu de Ponta Grossa no dia 21 de julho daquele ano, vindo por Chapecó e Nonoai, chegando a Cruz Alta no dia 20 de agosto. Ali permaneceu até 15 de setembro, visitando parentes e acertando a compra de 550 bestas, vindas da Fronteira, em julho, acompanhadas de algumas mulas que serviriam como vaqueanas e uma égua madrinha. No dia seguinte pousou no Jacuí; a 17 pernoitou em Cruzinha, seguindo pela manhã de 18 para pousar em Carazinho. Nessa noite aconteceu o primeiro extravio de mulada. Ali chegou e permaneceu abaixo de chuva e frio até 21, quando deixou um peão procurando um burro perdido. Ao entardecer do dia seguinte atravessou Passo Fundo, indo pousar no rio do mesmo nome. No dia seguinte caminhou uma légua, deu sal à mulada e permaneceu um dia tratando de um peão ferido em serviço.
Somente no dia 25 de setembro atravessou a picada do Mato Castelhano, perdendo duas bestas, extraviadas. Devido à chuva, permaneceu no Mato Castelhano até 27, viajando até o Passo da Taipa. No Mato Castelhano enfrentou novo estouro da mulada, dispersando-se “duzentas e tantas bestas”, que foram reunidas por um tropeiro conhecido como Juca Chato, que se incorporou ao patrão no dia seguinte. Enfrentando chuva, frio e rios transbordantes, somente chegaria ao Rio Pelotas, a 18 de outubro, porque era impossível atravessá-lo. Labutou 10 horas até ao por-do-sol para vadear o rio, deixando 19 bestas perdidas em solo gaúcho.
Bom, para encurtar essa história, Reinaldo chegou a Ponta Grossa no dia 19 de novembro. Se não falham meus cálculos, levou 65 dias de Cruz Alta à cidade paranaense. Isso com uma “tropa montada”. Imaginem se fosse uma “tropa cargueira”... E quantos dias mais demoraria até Sorocaba?
Segundo seu filho, o poeta Ribas Silveira, que preservou o Relatório de Viagem de seu pai, Reinaldo M. Silveira Loureiro, em seu livro Odisséia do Tropeirismo, foram 56 jornadas para atingir Ponta Grossa. As mulas foram compradas à razão de 60$000 por cabeça, o Estado extorquiu-lhe 2.969$000 e perderam-se 22 mulas, mortas ou extraviadas. E tem mais: a maioria dos peões eram bugres, o que quer dizer, índios caingangues.
Portanto, contrariando os cálculos dos estudiosos do tropeirismo, uma tropa de “mulas montadas”, isto é, sem cargueiros, ao menos entre o Planalto Gaúcho e o Planalto Paranaense, nos meses de inverno e primavera, percorria pouco mais de duas léguas por dia.

A primeira tragédia passo-fundense

Paulo Monteiro

Com a conquista das Missões, em 1801, consolidou-se a ocupação territorial, econômica e humana do que viria a ser o Rio Grande do Sul de nossos dias. Os militares que participaram dessa conquista acabaram dividindo entre si as novas terras.
A ocupação que começou pela atual região missioneira chegou ao atual perímetro urbano de Passo Fundo, em dezembro de 1827, quando Manuel José das Neves, mais conhecido como Cabo Neves, tomou posse das terras que lhe foram concedidas pelo Exército, fixando sua residência nas proximidades da atual Praça Almirante Tamandaré. Vinha acompanhado da família, parentes, agregados e escravos.
Como todo o descendente de bandeirantes era um plantador de cidades. Permitiu que outras famílias se fixassem nas proximidades. O arranchamento ali estabelecido cresceu rapidamente, com a chegada de diversas famílias, entre as quais a do alemão Adão Schell, nosso primeiro imigrante não-português. A recente povoação chamou a atenção dos governantes da Província que para cá mandaram, como primeira autoridade, Joaquim Fagundes dos Reis, que fixou residência nas proximidades do atual Bairro São José.
Logo surgiu uma capela, consagrada a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, necessária para o reconhecimento oficial da povoação, e, ao lado, o cemitério católico.
A extração e o beneficiamento da erva-mate, a agricultura de subsistência, a criação de animais domésticos, o aproveitamento da pele de animais silvestres e o entreposto de tropas que por aqui passavam, foram as primeiras atividades econômicas.
Em meados de 1835, ao estourar a revolta dos estancieiros fronteiriços contra o governo central do Brasil, Passo Fundo crescia em ritmo alucinante. As duas principais lideranças locais tomaram lados opostos: Manuel José das Neves, ficou com o Império; Joaquim Fagundes dos Reis, maçom, manteve-se fiel aos seus confrades. A passagem de tropas conflitantes, saqueando a tudo e a todos, provocou o êxodo da população, em sua maioria paulista e paranaense, que não tinha os mesmos interesses de charqueadores e estancieiros da Fronteira.
Em fins de 1840 por aqui passou o marechal Pierre Labatut, humilhado pelos ataques dos caingangues. Logo depois chegaram os revolucionários em seu encalço.
Muitos dos fazendeiros que, de início, apoiaram os farroupilhas, já haviam aderindo ao governo imperial, e participariam, inclusive, do Combate de Curitibanos, onde os revolucionários foram derrotados pelas tropas de Passo Fundo e Cruz Alta, conduzidas por Atanagildo Pinto Martins.
No território passo-fundense aconteceram alguns combates de pequena e média importância. Por aqui, após levantarem o cerco de Porto Alegre e subirem pela Serra das Antas, cruzaram e acamparam os principais próceres farroupilhas. Ao final do movimento armado, a promissora povoação estava reduzida a cinco ou seis ranchos, segundo o testemunho recolhido pelo historiador Antonino Xavier e Oliveira entre pessoas que aqui viviam ao tempo da revolução e, portanto, conheceram Passo Fundo daquela época.
A Revolução Farroupilha representou o que de pior poderia ter acontecido para a florescente povoação. Mesmo aqueles que, de início, ficaram ao lado dos revolucionários, ao sentirem que os interesses serranos não eram os mesmos dos charqueadores e estancieiros, bandearam-se para o lado imperial. Portanto, à exceção de alguns “políticos” e empregados públicos e pessoas, como Joaquim Fagundes dos Reis, que possuíam ligações com a corrente maçônica de que faziam parte os próceres farroupilhas, ficaram ao lado dos rebelados. A maioria dos passo-fundenses procurou refúgio no Paraná e São Paulo ou acabou apoiando as forças imperiais.
A Revolução Farroupilha, entre 1835 e 1845, foi a primeira grande tragédia que se abateu sobre Passo Fundo; a segunda foi a Guerra Contra o Paraguai (1864-1870) e a terceira a Revolução Federalista, de 1893. São três eventos históricos dos quais não temos nada de que nos orgulhar. Devemos orgulhar-nos de nossos ancestrais que souberam se beneficiar do posicionamento estratégico e dos recursos naturais para transformar nossa cidade num dos maiores centros econômicos e humanos do Rio Grande do Sul. Eles é que são nossos verdadeiros heróis.

A degola como decisão de governo

Paulo Monteiro

A Revolução Federalista é um dos momentos mais trágicos e vergonhosos da história do Rio Grande do Sul. Republicanos e federalistas moveram entre si uma guerra de extermínio. A luta era para decidir quem controlava os recursos públicos, através do controle do poder político sob a égide daquilo que os economistas chamam de acumulação primitiva.
Alguns historiadores, como Souza Docca, se negaram a escrever sobre ela; outros omitem fatos, escondendo as responsabilidades do Governo do Estado, mormente do presidente (governador) Júlio de Castilhos, na Revolução da Degola.
Funcionários civis e militares, cumprindo ordens do presidente (governador) Júlio de Castilhos, empregaram toda a máquina do Estado na destruição física dos federalistas.
Em Passo Fundo, no dia 8 de fevereiro de 1894, como deixo bem claro à página 46 de meu livro Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo (Berthier, 2006), 120 feridos foram chacinados pela Brigada Santos Filho, ao som da banda de música do Treme-Terra passo-fundense. Sabem quem fazia parte da Brigada Santos Filho, no posto de tenente-coronel? Antonio Augusto Borges de Medeiros, o herdeiro de Júlio de Castilhos, como ditador positivista. E sabem o que era Borges de Medeiros quanto se iniciou a Revolução Federalista? Magistrado do mais alto tribunal do Estado do Rio Grande do Sul. Quem quiser saber mais sobre a participação de Borges de Medeiros na “revolução da degola” leia Campanha do Coronel Santos Filho, de Pedro Carvalho (Porto Alegre: Officinas typographicas do Correio do Povo, 1987).
Sirvam os documentos revelados por Wenceslau Escobar, abaixo transcritos, como comprovação de que Castilhos dava ordens explícitas para o massacre dos adversários:
Coronel José Soares – Camaquã – Não poupe adversários, castigue nas pessoas e bens, respeitando famílias. Viva a República. Castilhos.
Coronel Madruga - Cacimbinhas – Adversários não se poupa nem se dá quartel. Remeto armas e munições que pede. Castilhos.
Esses documentos foram tornados públicos em 1920 por Wenceslau Escobar no livro Apontamentos para a História da Revolução Rio-grandense de 1893 (in. p. 174 da edição da Editora Universidade de Brasília, 1983).
O telegrama em que Firmino de Paula confirmava a matança de 370 prisioneiros do Capão do Boi Preto é um verdadeiro relatório de cumprimento das ordens genocidas de Júlio de Castilhos. Conforme podemos ler à página 83 de Os Olhos do General: Por que Firmino de Paula foi um dos homens mais temidos de seu tempo?, de Rossano Viero Cavalari (Porto Alegre: Martins Livreiro – Editor, 2007):
CRUZ ALTA, 10 DE ABRIL DE 1894. – VIVA A REPUBLICA HOJE, 5 MANHA, BATI UBALDINO ACAMPADO BOI-PRETO. COMPLETA DERROTA; MORRENDO 370 MARAGATOS, MUITOS DELES OFICIAIS. TOMEI 3 CARRETAS, 38 ARMAS ‘COMBLAINS’, 222 LANÇAS, MUNIÇOES, ABUNDANTE ARMAMENTO PARTICULAR, BARRACAS, MUITOS PRISIONEIROS, 500 ANIMAIS, PARTE MINHA PROPRIEDADE. UBALDINO, BRASIL PINHEIRO E ALFREDO PINHEIRO FUGIRAM. ENCONTREI NO ACAMPAMENTO PORÇAO DE FAZENDAS. AMANH SIGO BATER FORÇA REUNIDA PALMEIRA, DEPOIS PERIE, CAMPO NOVO, REPRESENTAM 600 MARAGATOS. UBALDINO TINHA ACIMA DE QUINENTOS. – CORONEL FIRMINO DE PAULA, COMANDANTE DA 5ª BRIGADA DA DIVISÃO DO NORTE
O Massacre do Boi Preto foi cometido pela 5ª Brigada da Divisão do Norte, força organizada pelo Governo do Estado. Portanto, sob o comando em chefe do próprio presidente (governador) Júlio de Castilhos. Era uma força oficial, ainda que provisória, mas oficial.
Para contar a história da Revolução Federalista é preciso mostrar o que significa a mais sangrenta revolução do Século XX, em solo americano. Embora os dados “oficiais” calculem o total de mortos entre dez e doze mil, os jornalistas Ambrose Birse, estado-unidense, e Apolinário Porto Alegre, sul-rio-grandense, calculam esse número entre trinta e trinta e seis mil, proporcionalmente maior do que na Guerra da Sessão. É o que se lê no livro O Homem que inventou a ditadura no Brasil, de Décio Freitas (Porto Alegre: Editora Sulina, 3ª edição, 1999, p. 176).

A personalidade violenta de Júlio de Castilhos

Paulo Monteiro

Júlio Prates de Castilhos, nascido no dia 29 de julho de 1860, na fazenda da Reserva, antigo distrito de São Martinho, município de Vila Rica, hoje Júlio de Castilhos, e falecido no dia 24 de outubro de 1903, em sua residência, na capital do Estado, quando era submetido a uma traqueotomia de urgência, para a retirada de um câncer de laringe, é uma das personalidades mais enigmáticas da história rio-grandense. Historiadores e filósofos gastaram, gastam e gastarão páginas infindas discutindo a importância ou a inimportância dos indivíduos na história. Geralmente aqueles que merecem a atenção dos pesquisadores sociais são figuras públicas com as quais se estabeleceu relações antípodas de paixão e ódio.
Júlio de Castilhos é um desses indivíduos diante dos quais é difícil manter-se um mínimo de isenção intelectual. A ele se atribui a maior culpa pela violência que marca as primeiras quatro décadas da República no Rio Grande do Sul. Dele partiu a ordem para as matanças:
Coronel José Soares – Camaquã – Não poupe adversários, castigue nas pessoas e bens, respeitando famílias. Viva a República. Castilhos.
Coronel Madruga - Cacimbinhas – Adversários não se popupa nem se dá quartel. Remeto armas e munições que pede. Castilhos.
Esse documento foi tornado público em 1920 por Wenceslau Escobar no Livro Apontamentos para a História da Revolução Rio-grandense de 1893 (in. p. 174 da edição da Editora Universidade de Brasília, 1983).
Sempre me pergunto: o que levaria um homem a tomar decisões verdadeiramente facinorosas? Nos últimos meses tenho me dedicado a estudar a vida e a obra de Júlio de Castilhos, relendo uns e lendo outros livros sobre esse homem satanizado, pelos herdeiros das velhas tradições liberais do Século XIX, e endeusado pelos continuadores do castilhismo.
É verdade assentada que, via de regra, todo o abusador foi vítima de violência. A maioria dos abusos ocorre na família ou na escola.
Othelo Rosa, que lhe dedicou uma longa biografia, com 327 páginas, intitulada Júlio de Castilhos, I Parte, Perfil biográfico, seguida de uma coletânea literária, com 511 páginas: Júlio de Castilhos, II Parte, Escriptos Politicos (Livraria do Globo, Porto Alegre, 1928) era muito apegado à mãe, Carolina, apego que transferiu à mulher, Honorata. Sempre foi fiel e obediente ao pai, Francisco, estancieiro de modos austeros, que deixou fama de probidade extremada.
Alfabetizado pela mãe, como era costume na velha sociedade semi-feudal rio-grandense, o pai contratou uma professora, Francisca Wellington, para dar continuidade aos estudos dos filhos e outros meninos das redondezas. Júlio era gago. “Gago a ponto de não poder responder às perguntas por ocasião dos exames orais”, depõe seu amigo João Daut Filho. Quando pronunciou as primeiras palavras, na escola, os colegas gritaram, em uníssono: “Gaguinho!” e soltaram sonoras gargalhadas. Bulling? Assédio moral? A definição técnica do fato pouco importa. Longe da saia da mãe e das barbas protetoras do pai, Júlio chorou, diante do brasileiríssimo esculacho, conta a jornalista Esther Cohen, no livro Júlio de Castilhos (Tchê/RBS, Porto Alegre, s/d).
Quando lemos os textos enfeixados por Othelo Rosa, em seu livro pioneiro, ou os selecionados por Paulo Carneiro, líder positivista de amplitude mundial, reunidos em Idéias Políticas de Júlio de Castilhos (Senado Federal/Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasília/Rio de Janeiro, 1982), chegamos a duvidar que tenham sido escritos por um tartamudo. Bom, mas Machado de Assis também era gago.
Estudioso de nossos dias, Ricardo Vélez Rodríguez, em Castilhismo: uma filosofia da República (Senado Federal, Brasília, 2010) lembra as dificuldades para entender o pensamento de Júlio de Castilhos, porque não era um teórico e acrescenta (p. 26) que “as peculiaridades do autoritarismo castilhista não podem ser explicada através de simples referências à filosofia de Augusto Comte. Castilhos, inspirou-se nele, mas deu ao seu conceito de política traços inéditos, frutos da sua personalidade e das condições concretas que viveu o Partido Republicano Histórico, na luta com a antiga elite dirigente sul-rio-grandense”.
Não é à toa que o filósofo venezuelano, há quase quatro décadas no Brasil, põe em primeiro plano a “personalidade” de Júlio de Castilhos e, somente a seguir, as “condições concretas que viveu o Partido Republicano Histórico”.
Tenho, nos últimos tempos, lido e participado de seminários e palestras sobre violência na escola. Essas atividades contribuíram para que me questione sobre a influência que a humilhação sofrida pelo pequeno gaguinho, lá no interior missioneiro, tenha exercido sobre a obra política e o estilo literário do futuro ditador.

Baptista Pereira: opositor do castilhismo-borgismo

Paulo Monteiro
Estudando a ditadura castilhista-borgista acabei relendo “O Rio Grande do Sul e suas Instituições Governamentais: Estudos de Política Constitucional”, de R. de Monte Arraes (Rio de Janeiro: Typographia do Anuário do Brasil, 1925), obra clássica sobre o tema. O Autor, além dos federalistas e dos assisistas coloca entre os opositores do castilhsimo-borgismo, os ruístas, “elementos radicados no plano superior da política federal, onde, por muitas vezes, têm encontrado no caminho de suas ambições, o entrave que lhes opõe a consciência cívica do partido republicano rio-grandense. Esse grupo era sobre tudo constituído pelos partidários, pelos admiradores incondicionais do talento deslumbrante e ilusionista de Rui Barbosa”.
Monte Arraes se referia, fundamental, mas indiretamente a Antonio Baptista Pereira, que realizara uma série de palestras denunciando o castilhismo-borgismo, que acabaram reunidas em dois livros: “Ruy Barbosa e o Rio Grande do Sul” (São Paulo: Monteiro Lobato & Cia. Editores, 1923) e “Pela Redempção do Rio Grande” (São Paulo: Livraria Academica Saraiva & C. – Editores, 1923). Esse gaúcho de Pelotas, formado pela Faculdade do Largo São Francisco, foi promotor de Justiça, assessor de Rio Branco, secretário de Rui na Conferência de Haya, casou com uma filha de Rui de quem foi secretário em Buenos Ayres. Homem de memória prodigiosa, poliglota, polígrafo e polimata, é considerado filho espiritual do autor de Cartas da Inglaterra.
Em 1924 concorreu a uma cadeira na Câmara dos Deputados, percorrendo o Rio Grande do Sul, em campanha eleitoral, denunciando de viva voz os desmandos da situação dominante. Foi um breve envolvimento com a atividade partidária, pois, não sendo eleito, dedicou-se de corpo e alma à publicação de obras onde expunha suas idéias a cerca do Brasil e seu povo. Vitoriosa a Revolução de 30 foi um dos primeiros intelectuais a denunciá-la, nos aspectos cesaristas que herdara do positivismo político rio-grandense. Apoiou a Revolução Constitucionalista, o que o levou à prisão.
Para Baptista Pereira o castilhismo-borgismo é a versão rio-grandense mais acabada da caudilhagem platina. Em Ruy Barbosa e o Rio Grande do Sul lembra um parecer que ficou incompleto, com o falecimento do constitucionalista, onde mostra a inconstitucionalidade da Constituição Rio-Grandense em face da Constituição Federal. Relaciona uma série de absurdos, inclusive a existência da Pena de morte no Rio Grande do Sul, batendo de frente com a carta maior da União. Via o Rio Grande foram da federação Brasileira.
Baptista Pereira, em diversas obras que publicou, como “Civilisação Contra Barbárie” (São Paulo: Rossetti & Camara, 1928), “Directrizes de Ruy Barbosa” (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932) e “Vultos e Episódios do Brasil” (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933), sempre defendeu o fortalecimento das Forças Armadas, e combateu o militarismo. Para ele, o castilhismo, sempre foi o elemento instigador do golpismo militar, constituindo-se, pois, no inimigo maior da democracia e da liberdade, como afirmou em “Bello Horizonte e o Rio Grande do Sul”, conferência reunida em “Pela Redempção do Rio Grande” (Ed. Cit. p. 151).
Com a lógica de ferro que o tornou um dos mais respeitados promotores públicos do Brasil, Baptista Pereira, na mesma conferência de Belo Horizonte elabora um dicionário da ditadura castilhista-borgista, encerrado com os termos seguintes: “(...) Os adversários reclamam? São infames percevejos. É como a Federação chama aos adversários. Desta vez o adjetivo é bem cunhado e foi bebido na mais pura fonte da tradição caudilhesca: é de Rosas, o sinistro déspota argentino, que acabava todos os atos oficiais com a imprecação crassilingue: que mueram los infames y selvajes unitários”. (Op. Cit., p. 158).
Denuncia o desrespeito à soberania nacional com a contratação de mercenários uruguaios para combaterem os revolucionários de 23. Entre esses bandidos nominava o degolador Paredes, que segundo o próprio Flores da Cunha, comandante de forças legalistas, costumava lamber a faca “para limpá-la e ao mesmo tempo beber o sangue das carótidas inimigas”. Esses mercenários eram comandados por Nepomuceno Saraiva, filho de Apparicio Saraiva e sobrinho de Gumercindo Saraiva, “heróis” de 93.
Não ficam por aí, as denúncias de Baptista Pereira, nesse documento, que está a exigir uma reedição. À página 185 da obra em epígrafe, ainda na mesma conferência que venho citando, transcreve dois artigos da Lei Eleitoral do Estado do Rio Grande do Sul, assegurando o direito de que até os mortos votassem:
“Art. 145. – Exibido o título, sob nenhum pretexto se recusará o voto ao eleitor, ainda que não esteja ele incluído na lista de chamada ou no registro do município (Lei n. 153, art. 95).
Art. 146. – Não compete à mesa entrar na apreciação da identidade da pessoa do eleitor, qualquer que seja o caso.
§ 1.º - Se a mesa reconhecer que é falso o título apresentado, ‘ou que pertence a eleitor notoriamente falecido ou ausente’, tomará em separado o voto”.
Em “Civilisação Contra Barbárie” (é essa a grafia no original) defende a tese de que o Império Brasileiro, ao ter um centro político, significava a civilização contra a tendência bárbara do federalismo extremado, que representava os anseios dos chefes locais, o caudilhismo, que contribuiu para o esfacelamento do Império Espanhol nas Américas. E é essa separação do Rio Grande da comunhão brasileira, que ele denuncia ao longo de suas obras.
Antonio Baptista Pereira é o mais típico vulgarizador do pensamento de Rui Barbosa, com relação ao positivismo político sul-rio-grandense, que teve sua manifestação prática, em nível regional, com a ditadura castilhista-borgista, e, nacionalmente, pouco depois, com o Estado Novo getulista. As duas ditaduras tiveram no pernambucano Raimundo de Monte Arraes um dos seus teóricos e defensores mais representativos. No estado-novismo, porém, o herdeiro intelectual de Rui estava mergulhado na pesquisa de fenômenos internacionais. Seu nome, a exemplo de tantos outros, foi apagado da história intelectual do Rio Grande do Sul, pelos continuadores da caudilhagem.

A CAMPANHA DA LEGALIDADE EM PASSO FUNDO

Paulo Monteiro

Em memória dos companheiros Almir Pinto Cardoso e Luis Carlos De Césaro, com os quais muito apreendi, na comunhão de leituras, discussões e sonhos, imorredouros, como lembrou o poeta Joubert de Araújo Silva na trova de que eles tanto gostavam:
Enganam-se os ditadores
Que no seu furo medonho,
Mandam matar sonhadores
Pensando matar o sonho.


Apresentação

Águas paradas não movem moinhos

Nossas ações orientadoras se baseiam na reciprocidade invasiva da relação contraditória entre superestrutura e infraestrutura. É a aceitação-negação entre a vontade centralizadora do Estado [superestrutura] e a sociedade civil em geral [infraestrutura]. Nossa materialização enquanto agente social é, sobretudo, um reflexo do conjunto das relações sociais de produção. Aceitamos ou negamos. Esta afirmação inclui a idéia do devir histórico: o homem devém e transforma-se continuamente, de uma forma lenta, gradual, seqüencial, de acordo com as transformações das relações sociais produtivas.
Nos fatos, todo período histórico deixa de herança, às gerações posteriores, os resultados finais dos embates travados antanho. Em determinado momento, a luz dos acontecimentos, a tese geral orientadora da sociedade é confrontada. Do questionamento inicial originam-se antíteses aglutinadoras. Agentes sócio-político-econômico, com políticas definidas e objetivos claros, se agrupam na defesa das ideias para se contrapor às vontades da superestrutura. Da disputa entre tese-antítese, surge a síntese ou nova tese geral orientadora também passível de questionamentos futuros.
As ideologias são expressões da superestrutura dirigida pelos áulicos que a ocupam em determinado período histórico. No período feudal [séculos 5 – 15] não havia separação entre religião e política. A sociedade dividia-se entre o clero [poder político e religioso]; nobres [guerreiros] e vassalos ou servos [camponeses]. Entre os séculos 16 e 18 predominou no Velho Mundo o período das monarquias absolutistas. A ideologia dominante considerava que o Monarca ou Rei era um ser superior, divino, e estava acima de todos os outros. Predominava a ideologia teológica cristã.
Tanto o regime feudal, quanto o regime monárquico ruiu de acordo com as expressões infra-estruturais. A sociedade daquele período passou a questionar o paraíso em que viviam a casta dominante e o purgatório ou inferno que se encontravam a maioria da população. Aglutinaram-se em torno de idéias de contraposição ao regime vigente. Construíram, de forma lenta e gradual, as condições materiais que objetivavam resolver sua condição material imediata e o devir histórico, gerando, no seio da velha ordem social, novas e superiores relações de produção.
Ao aderir uma idéia, uma causa libertária ou pseudo-libertária, que contradite as imposições do Estado, estamos aderindo a uma ideologia organizadora coletiva historicamente construída. No geral, as ideologias orientadoras precedem a nossa existência material. Tem influencias psicológicas. Organizam os seres e preparam o terreno no qual os homens adquirem consciências de sua posição sócio-política, forçando-os, salutarmente, a se movimentarem e lutarem pela causa a qual acreditam. Em outras palavras, permite a ruptura do considerado impossível pela superestrutura.
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O passo-fundense Paulo Monteiro, membro de tantas academias literárias, entre elas a Academia Passo-Fundense de Letras, escreveu ensaio comemorativo dos 50 anos sobre a “Campanha da Legalidade em Passo Fundo”. Chamou-me atenção, o cuidado do autor e, sobretudo, sua percepção intelectual-histórica-literária, de cotejar, cuidadosamente, as fontes manuseadas primárias ou não, sobre temática no contexto micro, sem desconsiderar, como muitos historiadores da intelectualidade universitária vêm elaborando acriticamente, o contexto macro.
O autor inicia, corretamente, a discussão relatando um marco histórico revolucionário que refletiu, sobretudo, nos aspectos sociais, culturais e econômicos, no comportamento de toda humanidade. Referimos-nos ao maio francês de 1789 ou, nas palavras interpretativas do autor sobre o processo histórico “A Revolução Francesa, que se iniciou, na prática, a 14 de julho de 1789, com a tomada da Bastilha, em Paris, [...] foi produto de um conjunto de idéias que passou para a história com o nome de Iluminismo”. Relata, sinteticamente, a disputa “ferro e fogo” entre a tese e antítese.
A tese era o antigo regime ou Ancien Régime. O poder sustentava-se na tróica monarquia-clero-aristocracia. Entre os séculos 16 e 18, esse estilo de governo, caracterizado pelas monarquias absolutistas, marcou a Europa na Idade Moderna. A antítese eram os revolucionários franceses, homens e mulheres que se aglutinaram em torno dos ideais libertários [Liberdade, Igualdade, Fraternidade]. Daquele embate surgiram as bases do capitalismo moderno e, sobretudo, as ideologias orientadoras que objetivavam reorganizar a nova ordem sócio-econômica internacional.
Prossegue o autor na sua narrativa histórica seguindo os rumos daquele torvelinho revolucionário. Os ventos que sopravam da Europa, chegaram a América Latina, Brasil e Rio Grande do Sul. Discorre sobre os ideais surgidos pós-revolução francesa de 1789. Faz uma rápida referência as idéias de Saint-Simon [1760-1825] e August Comte [1798/1857]. Conclui que nos ideais do positivismo comteano encontra-se a origem ideológica dos partidos reformistas, social-democratas e trabalhistas na Europa, América Latina e Brasil [PTB].
No Rio Grande do Sul os ideais positivistas movimentaram e aglutinaram seguidores em torno do Partido Republicano. Liderados pelo advogado [Faculdade de Direito de São Paulo] Julio de Castilho, [1860/1903] e, pelo colega de profissão, Borges de Medeiros [1863/1961] chegou ao poder em julho de 1891 com o primeiro e em 1903 com o segundo. O Castilhismo-Borgismo ocupou a superestrutura do Estado, com breves interrupções, por praticamente 37 anos. Tempo suficiente para espraiar os ideais do positivismo comteano pelos rincões do Rio Grande do Sul.
Discorre sobre a Revolução de 1930 e o devir histórico. Relata o embate político-econômico-social travado entre os velhos positivistas agroexportadores [tese] e seus continuadores trabalhistas social-reformistas [antítese]. Ressalta, temporalmente, os acontecimentos políticos internos, sob pressão da Casa Branca, que culminaram com o suicídio de Getúlio Vargas [1954]; renúncia de Jânio Quadros [1961] e ascensão [1961] e queda de João Goulart [1964], aproximando a discussão, sem anseio ou pressa, trabalhando cuidadosamente as fontes, a Passo Fundo.
Ao iniciar a discussão da “Campanha da Legalidade em Passo Fundo”, Paulo Monteiro novamente tem a preocupação histórica de não relatar o processo sem antecedentes. Resgata os grandes embates “ferro e fogo” travados no Estado começando pela, para alguns historiadores, “Revolução Farroupilha” e outros “Guerra Farroupilha” [1835-1845]. A divergência conceitual reside no fato de que Revolução pressupõe a destruição do antigo e construção do novo. Os valorosos cativos que lutaram bravamente acreditando que seriam libertos, ao término da guerra, não o foram.
Prossegue o autor na sua narrativa histórica discutindo, corretamente, a “Guerra Federalista” ou “Revolução Federalista”, ou ainda, “Revolução ou Guerra da Degola” [1893-1895] e as posições assumidas pelos caciques políticos de Passo Fundo: Antônio Ferreira Prestes Guimarães [Liberal] e Gervásio Lucas Annes [conservador] que aderiu ao Castilhismo [PRR]. Com a morte de Lucas Annes [1917], assume o comando do Partido local, Nicolau de Araújo Vergueiro. O PRR local cingir-se entre as facções vergueiristas e gervagistas, liderados pelos filhos de Gervásio.
A polarização se acirra. Nas eleições de 1947, os gervagistas filiam-se ao Partido Trabalhista Brasileiro [PTB] e, em aliança espúria, como acontece atualmente, coliga-se com seu rival nacional União Democrática Nacional [UDN], para eleger o prefeito Armando Araújo Annes, filho do cacique Gervásio. Discorre sobre o processo eleitoral de 1951 e 1955. Retoma a discussão do processo de renúncia do presidente de Jânio Quadros e os reflexos políticos na sociedade de Passo Fundo da publicação da carta renunciam em agosto de 1961.
Entra, em definitivo, no relato da participação de Passo Fundo na Campanha da Legalidade. Publica uma proclamação da Câmara de Vereadores de Passo Fundo onde os edis convocavam a sociedade passo-fundense a lutarem contra qualquer tentativa de golpe contra a Carta Magna da nação: João Goulart deveria assumir a presidência. Reproduz, na íntegra, Discurso de Leonel Brizola, proferido em 27 de agosto de 1961, através da Rede da Legalidade, convocando o povo do Rio Grande do Sul e do Brasil a se contraporem, se necessário, a “ferro e fogo”, contra o golpe.
Publica as manifestações de apoio das entidades e organizações de Passo Fundo ao Piratini à Campanha da Legalidade, entre elas, do prefeito Benoni Rosado; GTG Lalau Miranda; Funcionários do Banco do Brasil; da mulher passo-fundense através da LBA; do futebol amador e, indiretamente, das ordens religiosas das mais diferentes confissões. A “Campanha da Legalidade” havia penetrado nos poros de todos os sul-rio-grandenses através da política, liderada por Leonel Brizola, da poesia, literatura, arte, esporte, religiosidade... ou Jango assumia, ou Jango assumia!
Novamente tese e antítese só convergiriam em síntese no “ferro e fogo”. Infelizmente a síntese, patrocinada por interesses externos, sobretudo Casa Branca, resultou no período mais cinza da história brasileira: o golpe militar em abril de 1964. A Campanha da Legalidade em Passo Fundo, de Paulo Monteiro, constitui poderoso instrumento de informação sobre a participação ativa da população brasileira, sul-rio-grandense e passo-fundense na incansável luta entre o mundo do capital e o mundo do trabalho, mesmo que a orientação seja social-democrata. Um belo trabalho.
Setembrino Dal Bosco, Historiador e Diretor do Sindicato dos Bancários de Passo Fundo e Região, setembro de 2011.

NOTA DO AUTOR

A primeira edição deste livro, impressa nas oficinas da PASSOGRAFIC, foi lançada no dia 24 de agosto de 2011, durante a 14ª Jornada Nacional de Literatura. Na oportunidade, distribuí, gratuitamente, com o apoio de amigos e colaboradores, 3.000 exemplares de A Campanha da Legalidade em Passo Fundo, aos participantes daquele evento literário. A obra, com uma tiragem de 5.000 exemplares, sai em forma de jornal, com 16 páginas, graças ao apoio do Partido Democrático Trabalhista – PDT –, Diretório Municipal de Passo Fundo. Esse apoio tornou possível uma tiragem tão elevada para uma obra de história local.
Como escrevi à página 14 daquela edição, o fato de Passo Fundo, cidade onde nasci e optei por viver, ter sido um dos centros da Campanha da Legalidade é que me levou a escrever este estudo. Como em todos os meus textos opto por uma linguagem clara, jornalística, abandonando tudo o que possa transpirar “ranço acadêmico”. Repito o que já escrevi várias vezes: sou fundamentalmente um publicista, aquilo que se costuma traduzir como intelectual público. Escrevo para ser lido e entendido.
Assim, procurei fazer com que esta pesquisa alcançasse a maior circulação possível. É por isso que, em vez de editá-la em forma de brochura, o livro impresso tradicional, está circulando em forma de tablóide. Com isso, professores e demais interessados na história local, terão oportunidade de obterem um material sobre aquele importante período da história rio-grandense e nacional de difícil acesso.
Para alcançar esse objetivo necessitei procurar a colaboração de instituições comprometidas com a preservação daquele movimento espontâneo, em que se uniu a grande massa/povo e setores políticos e intelectuais comprometidos com as mudanças estruturais necessárias para que o Brasil seja um país independente de fato. Procurei apoio de amigos no movimento sindical. Como o tempo passasse e essa parceria demorasse, lembrei-me do Partido Democrático Trabalhista (PDT), herdeiro do trabalhismo histórico. Prontamente encontrei colaboração, através da pessoa do seu presidente municipal, Paulo Roberto Padilha.
Em nenhum momento, esses colaboradores solicitaram qualquer mudança no original – e nem eu o aceitaria.
A parceria proposta a companheiros sindicalistas somente foi confirmada depois que o ensaio já estava impresso.
Poucas horas depois que A Campanha da Legalidade em Passo Fundo circulava sob a forma de jornal-livro, o Projeto Passo Fundo, disponibilizava, através da Internet, uma edição em e-book, portanto, a segunda deste trabalho. Agora, circula com a Apresentação do historiador Setembrino Dal Bosco e com algumas alterações, o que lhe confere os caracteres técnicos de uma real terceira edição. Problemas alheios à vontade humana impediram que, desde a publicação inicial, o texto enriquecedor de Setembrino Dal Bosco acompanhasse minha pesquisa.
Por Passo Fundo passaram milhares de soldados do Exército Brasileiro. Os que ainda vivem conservam na memória a recepção que os passo-fundenses lhes proporcionaram. Um número incontável de homens e mulheres participou ativamente do movimento, conforme comprovo com a documentação transcrita abaixo. Aqui era o centro universitário de uma vasta região, com um movimento estudantil, secundarista e universitário, politizado, polarizado e atuante. Desde, pelo menos, 1883, quando foi fundado o Clube Amor à Instrução, possuía um intenso movimento cultural. Há décadas contava com uma imprensa sólida. Acrescente-se a tudo isso a politização passo-fundense. Tudo isso veremos nas páginas seguintes.
A cidade, mesmo antes de emancipar-se de Cruz Alta, em 1857, é o núcleo urbano mais desenvolvido da metade Norte do Rio Grande do Sul. Em 1961, constituía-se no centro operário mais organizado da região, especialmente com o elevado e combativo segmento ferroviário. Além do mais, como cidade mais populosa e economicamente desenvolvida da região e um das maiores do Estado, apresentava as chamadas “condições objetivas e subjetivas” da História estavam, pois, presentes para que se tornasse um dos centros de resistência democrática.
Passo Fundo, 10 de outubro de 2011.

1. A IDEOLOGIA TRABALHISTA E A CAMPANHA DA LEGALIDADE

Da mesma forma como precisamos de ferramentas para atuar sobre o meio físico, necessitamos de utensílios para atuar sobre o meio social. Se, por exemplo, usamos pás, enxadas ou escavadeiras, para abrir uma valeta, ao ferramental teórico empregado na vida social denominamos ideologias. Assim, socialismo, liberalismo, trabalhismo e outros “ismos” mais são apenas nomes que damos às ferramentas empregadas em nossas atividades práticas (políticas) na vida social.
A Revolução Francesa, que se iniciou, na prática, a 14 de julho de 1789, com a tomada da Bastilha, em Paris, e a derrubada do Império, foi produto de um conjunto de idéias que passou para a história com o nome de Iluminismo. Essa revolução marca o fim histórico do Feudalismo, também conhecido como ancien regime ou antigo regime e a consolidação do Capitalismo ou regime do laize faire ou da livre iniciativa.
Uma vez derruído o modo de produção feudal, muitos pensadores e homens de ação entenderam que as idéias que serviram para derrubar o Feudalismo não se aplicavam mais para desenvolver o Capitalismo universalmente triunfante.
Um desses homens, Saint-Simon (1760/1825), que participou da Revolução Francesa e por isso repudiou seu título de conde, elaborou um plano de regeneração social, baseado na concepção de que a sociedade é uma “verdadeira máquina organizada”. Assim, seu “plano de organização social provém diretamente do avanço do espírito humano e a sua adoção é consequência inevitável do passado político da sociedade européia”. Um dos pais do chamado “socialismo utópico”, previa uma nova organização social (do capitalismo) sob o comando de uma elite esclarecida, a que deu o nome de savants positifs. August Comte (1798/1857) foi, de início, discípulo de Saint-Simon; acabou dissentindo do mestre e criando sua própria teoria de reorganização social (do capitalismo), que ficou conhecida como positivismo – não ocasionalmente um termo derivado do francês positif –.
Ricardo Vélez Rodriguez, que tem dedicado mais de quatro décadas de seu labor intelectual ao estudo do positivismo no Brasil, mormente do chamado positivismo político, analisou as vinculações entre o saint-simonismo e o positivismo no ensaio A Ditadura Republicana Segundo o Apostolado Positivista (Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982). Destaca o aspecto religioso que acabam assumindo as duas concepções: “cristianismo geral e positivo”, na primeira; “religião da humanidade”, na segunda.
“Da mesma forma que em Saint-Simon – escreve Ricardo Vélez Rodriguez, à página 26 da edição citada –, a religião comteana apela para o sentimento, como a mola que consegue movimentar o homem no processo da unidade social, bem como controlar os ímpetos desordeiros da razão. A mulher (depositária do poder espiritual doméstico) e os proletários (aqueles que não possuindo acumulação de dinheiro, vivem do salário do trabalho diário) estão mais próximos do sentimento do que os outros componentes da sociedade, e junto com o clero da Igreja Positivista – (...) – integram o Poder Espiritual”.
Da França, o positivismo encontrou seguidores na Inglaterra, no Brasil e outros países latino-americanos, como o Chile, a Argentina e o México. O Rio Grande do Sul, com o Partido Republicano Rio-Grandense, liderado por Júlio de Castilhos (1860/1903) e Antonio Augusto Borges de Medeiros (1863/1961) foi o único local do mundo em que chegou ao poder. Daqui, com Getúlio Dornelles Vargas (1883/1954), a partir da Revolução de 30, em boa parte, aplicou-se a nível nacional.
Não é sem sentido que, tanto na Inglaterra quanto nos países onde o positivismo encontrou seguidores tenham surgido partidos reformistas, social-democratas, como o Partido Trabalhista Inglês e o Partido Trabalhista Brasileiro. Todos preocupados com a situação do “proletariado” e sua inclusão no modo de produção capitalista.
Diversos pensadores, brasileiros e estrangeiros, têm escrito sobre essa influência do positivismo no trabalhismo brasileiro. Essa ligação está presente nas obras de autores como o marxista soviético B. M. Kedrov (Classificación de las ciencias, dois tomos, Editorial Progreso, Moscu, 1974) ou Miguel Bodea, trotskista brasileiro que aderiu ao trabalhismo de Leonel Brizola (A greve de 1917 e as origens do trabalhismo gaúcho, L&PM Editores Ltda., Porto Alegre, s/d (1979) e Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul, Editora da Universidade, Porto Alegre, 1992), passando pelo weberiano Ricardo Vélez Rodrigues, colombiano que vive no Brasil há mais de quatro décadas, ator de diversos trabalhos sobre o tema, que culminou com o livro Castilhismo: uma filosofia da República (Brasília: Editora do Senado Federal, 2ª edição, 2010).
Em toda a América Latina os partidos comunistas e social-democratas sofreram a oposição ferrenha de “liberais”, que nada possuíam em comum com o clássico liberalismo inglês. O período posterior à II Guerra Mundial, com a chamada Guerra Fria, representou o auge dessa oposição. Em nome da “preservação dos valores cristãos e da democracia ocidental”, com o apoio dos Estados Unidos da América, contribuíram para a instauração de regimes autoritários. Em cada Jango, em cada Brizola, todos de matriz positivista, enxergavam um “novo Kerensky”, a ser afastado a qualquer preço, mesmo com a eliminação física de simples “inocentes úteis”.
Quando estudamos as ideologias e as lutas políticas, precisamos ter em mente que estas representam a forma ilusória assumida pelos interesses econômicos (em particular das pessoas e, no geral, dos grupos sociais de que as pessoas fazem parte). No Brasil, como nos países de origem colonial, a grande disputa é entre os interesses agro-exportadores e daqueles que defendem o desenvolvimento de um capitalismo nacional. Tanto os velhos positivistas quanto seus continuadores, os trabalhistas, defendem o regime da livre concorrência com a inserção (reformismo social) do proletariado no processo desenvolvimentista. Os liberais (à brasileira) acabaram presos à defesa da manutenção da política de privilegiar as exportações de matérias-primas, como no período colonial. Ao verem que esse tipo de política, em termos da realidade econômica, era insustentável optaram pelo desenvolvimento econômico, excluindo a participação do proletariado.
Leôncio Basbaum, no quarto volume de sua clássica História Sincera da República (São Paulo: Editora Alfa-Omega, 3ª edição, 1976, p. 12), referindo-se às “terríveis pressões” – expressão do próprio Jânio Quadros – que levaram o presidente à renuncia, assim se expressa:
“Trata-se dos mesmos grupos econômico-políticos, prejudicados depois de 1930 – a Revolução Inacabada – por não lhes terem permitido o controle do poder como desejavam, os mesmos grupos que, por isso mesmo, derrubaram Getúlio Vargas em 1945, e que a seguir depuseram em 1954, provocando o seu suicídio. Os mesmos grupos que, por fim – sempre em busca do poder político – derrubaram em 1964 o Presidente João Goulart.
Há pois, como se vê, uma continuidade lógica nos acontecimentos. Esses grupos são os mesmos que, em 1945, recorreram ao embaixador norte-americano Adolfo Berle Jr. E, em 1963/1964, a outro embaixador norte-americano, Lincoln Gordon. São ainda os mesmos grupos que, não podendo contar com o apoio do povo para suas investidas em direção ao poder, em 1945, 1951, 1954, 1961 e, por fim em 1964, não cessaram de apelar às forças armadas, para fazê-lo para eles.”
O Autor de Processo Evolutivo da História comete um evidente equívoco ao afirmar que esses grupos “depuseram” Getúlio Vargas em 1954, o que não está muito longe da verdade, pois o processo de deposição estava em marcha, no momento em que ele se suicidou em 24 de agosto daquele ano. Com sua auto-eliminação física Getúlio evitou uma guerra civil, guerra civil que João Goulart impediu ao retornar ao país e aceitar a emenda parlamentarista de setembro de 1961; banho de sangue que afastaria, outra vez, em abril de 1964, ao seguir para o exílio. Comprovam-no 1954, 1961 e 1964 o conteúdo reformista do trabalhismo neo-positivista. Não se pode esquecer que tanto Getúlio quanto Jango eram originários da elite estancieira rio-grandense, marginal em relação à grande economia agro-exportadora e, Leonel de Moura Brizola, filho de um pequeno proprietário rural no então 4º distrito de Passo Fundo...
Quanta diferença entre os mencheviques russos, de 1917, e os trabalhistas brasileiros, de 1964, ante as “forças terríveis” dos herdeiros do ancien regime.
Passados cinquenta anos, as razões que levaram Jânio Quadros à renúncia continuam dividindo os estudiosos. Num livro clássico e volumoso intitulado História do Povo Brasileiro, em que o próprio Jânio Quadros escreveu a “fase colonial” e seu ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco, redigiu a “fase colonial”, encontramos, quase que “oficialmente” os motivos da renúncia. Segue-se o que lemos à página 239 do sexto volume da obra em epígrafe (São Paulo: J. Quadros Editôres Culturais S.A, 1967):
“João Goulart, o vice-presidente, estava em missão de boa vontade na República Popular da China. O presidente da Câmara era o deputado Ranieri Mazzilli, que pouco depois assumia o mandato, enquanto João Goulart se fazia indesejável a muitos setores influentes do sistema do poder.
A renúncia tem sido objeto de interpretações as mais controversas segundo perspectivas as mais variadas: desde as de tipo psicologizante – Jânio Quadros, um instável e emocional, provinciano e desaparelhado, tomava consciência de sua incapacidade; Jânio Quadros, pusilânime e timorato, abandonava o barco antes que o afundassem –; passando pelas de tipo condicionante – Brasília, a isolada e isolante, era a fonte da ingovernabilidade do país ao mesmo tempo que causa da emocionalidade dos dirigentes –; até as do tipo maquiavélico – Jânio Quadros, em verdade, como de duas vezes anteriores, manobrava com o espectro da renúncia para poder retornar, na crista da onda da reação popular, com a soma de poderes sem os quais não via a possibilidade de gerir o país, poderes que o sagrariam como ditador.”
Um pouco adiante (páginas 241 e 242), traduzindo o “raciocínio” de seu chefe e parceiro de historiografia, Afonso Arinos de Melo Franco, para arrematar os termos que transcrevemos nos dois parágrafos acima, assim se expressa textualmente:
“Seu raciocínio foi o seguinte: primeiro, operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart, distante na China, não permitiriam as forças militares a posse, e destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em conseqüência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime, cabendo, em consequencia, depois a um outro cidadão – escolhido por qualquer via – presidir ao país sob o novo esquema viável e operativo: como, em tudo o que importava era a reforma institucional, não o indivíduo ou os indivíduos que a promovessem, sacrificando-se ele, ou não se sacrificando, o essencial iria ser atingido.
O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos chefes militares.
João Goulart, compadecendo-se com a reforma parlamentarista, desfez, talvez sem sabê-lo, todo o plano concertado.”
Almino Affonso, que como líder do PTB, comandou a luta no Congresso Nacional pela posse de João Goulart, escreveu o livro Raízes do Golpe: Da Crise da Legalidade ao Parlamentarismo – 1961-1963 (São Paulo: Marco Zero, s/d). Com a clareza de quem viveu a crise por dentro, Almino Affonso lista uma série de ações praticadas por Jânio Quadros que contribuíram para o seu isolamento político. Jânio desrespeitou os princípios constitucionais, o parlamento e a autonomia política dos estados; perseguiu a quem quer que seja que lhe pudesse fazer sombra, a começar por seu próprio vice-presidente, e praticava uma política interna que entrava em contradição com sua política externa. Jânio apresentava um comportamento megalomaníaco, capaz de fazê-lo sonhar com um governo ditatorial.
Assim que o Congresso Nacional tomou conhecimento da renúncia do presidente, o deputado Almino Affonso, sentindo que o ato “tresloucado” de Jânio Quadros era parte de um golpe concertado com os setores autoritários da sociedade, a começar pelos militares fascistóides, pronunciou um discurso em que desmascarava os planos antidemocráticos.
“Sustentei a tese – resume o discurso à página 23 de Raízes do Golpe –, sem rebuços, de que Jânio Quadros falseava os fatos para encobrir sua trama golpista. Que forças terríveis levantavam-se contra ele? A sua política econômica recebia aplausos do FMI, portanto, dos banqueiros internacionais. No plano interno, os empresários exultavam ao vê-lo duro em sua política repressiva ao movimento sindical, ao exercício do direito de greve. Ponderáveis setores da classe média ainda se entusiasmavam com a sua pieguice de proibir “briga de galo” e o uso do biquíni em concursos de beleza... No Congresso Nacional, embora sem maioria parlamentar, nenhuma medida legislativa lhe fora negada, salvo um veto em questão de menor importância.
Além disso (sustentava eu no calor dos acontecimentos), o presidente Jânio Quadros em seu manifesto à nação apressara-se em louvar as Forças Armadas: “cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade”. Que outras “forças terríveis” teriam condições de anular-lhe a autoridade? Na verdade, o que o sr. Jânio Quadros queria, através do dramatismo da renúncia, era criar um quadro acéfalo e, no bojo de uma crise profunda, ser convocado para assumir a Presidência da República na plenitude dos poderes ditatoriais. Pois se enganava supondo atemorizar-nos. Havia apresentado a sua renúncia e o Congresso Nacional lhe respondia: a renúncia está aceita.”
O discurso de Almino Affonso está transcrito entre as páginas 91 e 102 de seu livro. Em aparte, Gustavo Capanema, constitucionalista reconhecido, deu um cheque-mate na questão:
“(...) É esse “aceita” que eu gostaria, com a devida vênia, de retificar. A renúncia é, por definição, ato unilateral, irretratável.
A renúncia, portanto, não está aceita. A renúncia é um acontecimento histórico. Não temos competência constitucional para aceitá-la, para recusá-la, para aplaudi-la, para tomar qualquer conhecimento em face dela. A única coisa que nos cabe é tomar conhecimento do acontecimento que foi a renúncia, ato unilateral e irretratável, repito, do sr. presidente da República. Nestas condições o que se segue é a aplicação pura e simples da Constituição. Assume o Governo o vice-presidente da República pelo resto do período, e como Sua Excelência, já agora presidente da República, não está no país, assume o poder, em seu lugar, o presidente da Câmara, como a Constituição indica.”
O que os parlamentares fizeram, a partir daí, foi imporem a obediência à Constituição. E o golpe saiu às claras, com os pronunciamentos dos ministros militares, apoiados por todos os demais elementos reacionários.

O TRABALHISMO EM PASSO FUNDO

Sandra Mara Benvegnu realizou demorada pesquisa sobre o surgimento e a evolução do Partido Trabalhista Brasileiro em Passo Fundo. O volumoso e substancial estudo leva o título de Décadas de Poder: O PTB e a ação política de César Santos na Metrópole da Serra 1945-1967. A historiadora apresentou seu trabalho em setembro de 2006, na Universidade de Passo Fundo.
Tenho afirmado, de acordo com historiadores mais antigos, que a polarização política, no Rio Grande do Sul, é ancestral. Manifestou-se de forma violenta, entre 1835 e 1845, na Revolução Farroupilha. Nessa guerra civil as duas primeiras lideranças locais: Manuel José das Neves,o Cabo Neves, primeiro proprietário e morador do que seria a atual área urbana de Passo Fundo, e Joaquim Fagundes dos Reis, a primeira autoridade constituída do local, tomaram partidos diferentes. O proprietário da Fazenda Nossa Senhora da Conceição Aparecida do Passo Fundo, ficou do lado imperial. Já Fagundes dos Reis, lutou ao lado dos farroupilhas, foi preso e libertado com dinheiro dos cofres da República Rio-Grandense, como era costume fazerem com os maçons que eram recolhidos aos cárceres do Império.
Essa polarização ideológica, a seguir, continuaria nas lutas entre entre liberais (chefiados por Antônio Ferreira Prestes Guimarães) e os conservadores (liderados por Gervasio Luccas Annes), como podemos ver nos pronunciamentos reunidos por Helga Iracema Piccolo nos dois volumes da Coletânea de Discursos Parlamentares da Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul 1835-1889 (Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 1998). Polarização que se acirrou com a proclamação da República, pois Prestes Guimarães continuou fiel a Gaspar da Silveira Martins e Gervasio Annes, que aderira ao Partido Republicano Rio-Grandense, ainda no Império, tornou-se o lugar-tenente de Júlio Prates de Castilhos, culminando com as barbaridades cometidas durante a Revolução Federalista (1893/1895), liderada por ambos, em posições antípodas.
Angelo Dourado, em seu clássico Voluntários do Martírio, conta a passagem das tropas maragatas por Passo Fundo, retornando de sua aventura pelos estados de Santa Catarina e Paraná, em trecho ilustrativo da polarização partidária e politização local, à página 247 de seu famoso livro (Porto Alegre: Martins Livreiro – Editor, 3ª Edição, 1979):
“(...) Eu achava-me na cidade em casa da família de um companheiro quando as nossas forças desfilaram. Conquanto não houvesse ali uma família que não tivesse uma pessoa nas forças de Prestes, famílias companheiras, e a marcha deles causasse apreensões até as lágrimas, contudo ao passarem maltrapilhos vindos do norte, aos sons da música, todas aquelas lágrimas cessaram, para suceder nas fisionomias a expressão de entusiasmo.
– São uns heróis, disse-me uma respeitável senhora.
– E revolução que conta com gente desta natureza, ou triunfa ou não se termina senão com a morte do último, respondi-lhe eu e despedi-me, para ocupar o meu lugar na coluna”.
Passada a “revolução da degola”, a polarização continuou, mesmo sob a hegemonia esmagadora dos vencedores, sob a liderança imperativa do coronel Gervásio Luccas Annes.
A morte desse veterano líder, em 1917, agravou um processo de cisão dentro do Partido Republicano Rio-Grandense, tanto a nível regional quanto local, devido ao sistema ditatorial (quase monárquico, digamos assim) que vigorava nas direções partidárias. Nicolau de Araújo Vergueiro assume o comando partidário municipal, aprofundando a rivalidade com o “velho grupo” do Coronel Gervásio, rivalidade que culminaria na Revolução de 23, tramada no escritório do deputado libertador Arthur Caetano, que se localizava na Rua Moron. Em princípios daquele ano a cidade foi até cercada pelos insurgentes. O levante passo-fundense apenas se tornou possível porque os herdeiros do antigo federalismo estavam engrossados com veteranos líderes republicanos dissidentes.
Como forma de enfrentamento à liderança “vergueirista”, os “gervasistas”, liderados por Herculano Araújo Annes e Armando Araújo Annes, filhos do Coronel Gervasio, apoiaram a fundação do bi-semanário O Nacional, em 1925. Poucos anos depois, veio de Porto Alegre, Túlio Fontoura que, estimulado pelo oficialismo local passa a publicar A Luta, que seria fechado em 1932, quando o jornalista adere à Revolução Constitucionalista, sendo preso logo após o Combate do Passo do Fão, e Nicolau Vergueiro segue para o exílio. Em 1935, Túlio Fontoura começa a editar o Diário da Manhã, sempre fiel àqueles que o trouxeram de Porto Alegre para fixar residência em Passo Fundo.
Poucos anos depois, da Revolução de 23, a cidade viu-se, de novo, no centro de outra tempestade revolucionária. O comandante do 8º RI, que fora auxiliar do pai de Virgilio de Mello Franco, “na Liga das Nações, e em outras missões no estrangeiro, gozava de grande prestigio no Exército, passando por chefe disciplinador, culto e competente”, foi contatado para chefe da Revolução de 30. Conforme orientação de Oswaldo Aranha, o deputado mineiro esteve na cidade, conforme ele mesmo conta às páginas 341 e 342 de Outubro, 1930 (Rio: Schmidt – Editor, Rio de Janeiro, Quarta Edição, s/d (1931?):
“Atendendo aos desejos do Sr. Oswaldo Aranha, segui para Passo Fundo, no dia 3 de agosto à tarde, em companhia de Quim César e do major Carlos Eiras. Chegamos a Passo Fundo, depois de vinte e muitas horas de viagem, na noite do dia seguinte. O coronel Quim César, chefe libertador de grande prestigio em toda a região serrana, e antigo lugar-tenente do general Felipe Portinho, nas passadas revoluções rio-grandense, levou-nos para casa de um amigo seu, o Sr. Polidoro Albuquerque, nas vizinhanças do quartel do Exército. Lá chegamos mais ou menos às dez horas da noite. Escrevi imediatamente, ao coronel Leitão de Carvalho uma carta, na qual lhe pedia que me viesse ver, na casa do Sr. Albuquerque, também amigo seu. Acrescentava que, querendo eu falar-lhe sobre um assunto grave e reservado, de natureza política, não levaria em absoluto a mal, se ele preferisse não se avistar comigo... O próprio Sr. Albuquerque prestou-se gentilmente a ser o portador da minha carta. Meia hora depois, chegava o coronel Leitão de Carvalho à casa em que eu me enc ontrava. Trocados os primeiros cumprimentos, mostrei-lhe eu a carta do Sr. Oswaldo Aranha, para, então, discutirmos a situação geral do país, arrastado por um governo desatinado ao desfiladeiro perigoso em que nos encontrávamos.
Minas, o Rio Grande do Sul e a Paraíba, estavam dispostos a marchar para a revolução, uma vez que o presidente da República, abusando dos poderes que a Nação lhe confiara, não se detinha diante de nada. O coronel Leitão de Carvalho ouviu-me atentamente e comigo concordou, em gênero, número e caso. Não aceitou, porém, nenhum papel na revolução, nem assumiu nenhum compromisso, a não ser o de não revelar a ninguém a conversa que comigo tivera.”
No dia 3 de outubro de 1930 forças combinadas da Brigada Militar e civis, melhor armadas é municiadas do que o próprio 8º RI, ocuparam a cidade, travando violento combate com o Exército, que acabou capitulando, após algumas horas de combate.
Uma vez eliminada qualquer possibilidade de contra-revolução, quatro corpos de voluntários civis, unidas a forças militares uniram-se à vanguarda revolucionária que invadiu os estados de Santa Catarina e Paraná, conforme escreveu Alberto Antonio Rebonatto no ensaio Revolução de 1930: aspectos locais (in 150 Momentos mais importantes da história de Passo Fundo, organizado por Osvandré Lech. Passo Fundo: Méritos, 2007, págs. 188 e 189).
A divisão entre os republicanos, na segunda metade da década iniciada em 1910, e o prestígio que os libertadores conquistaram após a chegada de Getúlio Vargas à presidência da república, provocou grande descontentamento nas hostes “vergueiristas”. Tanta era essa indignação que havia o temor de apoio militar dos detentores do poder local à Revolução Constitucionalista, irrompida em São Paulo a 9 de julho de 1932. Esse descontentamento levou à ocupação de Passo Fundo no dia 18 à noite, pelo temido 3º Corpo Auxiliar da Brigada Militar, que entrou para a história com o nome de “Pé no Chão”. Os invasores estavam preparados, esperando serem recebidos à bala. Toda a tropa pernoitou, em silencia, no quadro da estação ferroviária e, no dia seguinte, instalu-se no quartel do Exército.
Nesse mesmo dia, 19 de julho, o coronel Serafim de Moura Assis, comandante do “Pé no Chão”, foi à Prefeitura, onde encontrou o coronel Marcos Bandeira, comandante do 9º Corpo Auxiliar em companhia de Nicolau de Araújo Vergueiro. Ambos prometeram apoio a Getúlio Vargas e Flores da Cunha, interventor federal no Estado. No dia seguinte foram presos o Dr. Rossauro Tavares e o jornalista Túlio Fontoura, que foram soltos logo depois, conforme conta Nicolau Mendes, às páginas 16 a 19, da segunda Edição de O PÉ NO CHÃO (Porto Alegre: S/Editor, 2ª Edição, 1958).
Em 1º de setembro, Rossauro Tavares, no posto de coronel, estava entre os signatários do manifesto divulgado durante a ocupação de Soledade pelas forças constitucionalistas comandadas pelo general Cândido Carneiro Júnior, General Candoca. Túlio Fontoura, como tenente-coronel, no dia 10, participa da reunião, em meio à serra, onde os oficiais são informados pelo General Candoca, sobre o fracasso do levante constitucionalista no Estado. Mesmo assim continua o movimento armado que culminaria com o Combate do Passo do Fão, nos dias 12 e 13 de setembro, em que os sublevados foram batidos, mas continuaram resistindo até a capitulação final, assinada em Guaporé a 22 de outubro de 1932. José Augusto de Paula, que participou da Revolução Constitucionalista, na parte comandada pelo General Candoca, escreveu a história desse movimento em O FÃO: um episódio da Revolução de 1932 no Rio Grande do Sul (Passo Fundo: João B. M. Freitas – Gráfica e Serviços, dezembro de 1972, 2ª edição).
Nicolau de Araújo Vergueiro, que seguiu para o exílio na Argentina, dali retornou pacificados os ânimos, para continuar sua vida profissional e política.
Em 1945, diante do processo de redemocratização e surgimento do pluripartidarismo, ocorre a rearticulação dos velhos grupos do extinto Partido Republicano Rio-Grandense: os “vergueiristas” filiam-se ao Partido Social Democrático – PSD, liderado por Túlio Fontoura, Nicolau Vergueiro, Arthur Ferreira Filho e Antonio Bittencourt de Azambuja, conforme nota Sandra Mara Benvegnu, a certa altura de sua dissertação. Já os “gervasistas” filiam-se ao Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, elegendo Armando Araújo Annes, filho do Coronel Gervásio, prefeito, em coligação com a União Democrática Nacional – UDN, arquiinimiga dos trabalhistas, a nível nacional
A continuidade daquela ancestral polarização política é demonstrada por Sandra Mara Benvegnu, ao longo de sua muito bem documentada dissertação. E fica patente nos quadros de votação, apenas para as eleições de prefeito, entre 1947 e 1959, que transcrevo do livro Eleições em Passo Fundo: Dados Históricos (Berhier: Passo Fundo, 2010), de Marco Antônio Damian, financiado pelo Projeto Passo Fundo.

ELEIÇÃO DE 15 DE NOVEMBRO DE 1947

Nessa eleição, os trabalhistas, coligados com a União Democrática Nacional, além do prefeito e do vice-prefeito, elegeram 5 vereadores, o Partido Social Democrático elegeu 9 parlamentares, e a coligação entre o Partido Libertador e o Partido Republicano Progressista ficou com uma cadeira na Câmara Municipal.

Nº Nome Legenda Votos Situação
Para Prefeito
1 Armando Araújo Annes PTB/UDN 5.560 Eleito
2 Dionísio Lângaro PSD 5.395
3 Carlos Galves Col. Dem. Cristã 1.479
Para Vice-prefeito
4 Daniel Dipp PTB/UDN 5.448 Eleito
5 Ivo Pio Brum PSD 5.309
6 Francisco Foresti Col. Dem. Cristã 1.427

ELEIÇÃO DE 1 DE NOVEMBRO DE 1951

Já é definido o quadro político municipal, mais de acordo com a situação nacional, a coligação entre os trabalhistas, o Partido Social Progressista e o Partido Republicano, elegeu 7 edis, enquanto o Partido Social Democrático e a União Democrática Nacional, agora coligados, somaram 5 vereadores, o velho Partido Libertador ficou com duas cadeiras e o Partido Social Progressista, com um vereador. De novo, prefeito e vice-prefeito saem dos quadros trabalhistas.

Nº Nome Legenda Votos Situação
Para Prefeito
1 Daniel Dipp PTB/PSP/PR 9.905 Eleito
2 Dionísio Lângaro PSD/PL/UDN 8.105
Para Vice-prefeito
3 Mário Menegaz PTB/PSP/PR 9.873 Eleito
4 Elpídio Fialho PSD/PL/UDN 8.124

ELEIÇÃO DE 3 DE OUTUBRO DE 1955

Confirma-se a hegemonia trabalhista, repetindo a eleição de prefeito e vice-prefeito e aumentando o número para 8 vereadores, contra 4 do Partido Social Democrático, dois do Partido Social Progressista, enquanto o Partido Libertador tem sua representação reduzida para um edil.

Nº Nome Legenda Votos Situação
Para Prefeito
1 Wolmar Antonio Salton PTB 8.728 Eleito
2 Gervásio Araújo Annes PSD 6.017
Para Vice-prefeito
3 Benoni Rosado PTB 8.483 Eleito
4 Ítalo Benvegnú PSD 5.967

ELEIÇÃO DE 8 DE NOVEMBRO 1959

Essa eleição teve o aparecimento de uma cisão trabalhista, popularmente conhecida como “ala rebelde do PTB”, liderada pelo advogado Daniel Dipp, que se articulou eleitoralmente sob a denominação de Movimento Trabalhista Renovador. Toda essa cizânia está registrada por Sandra Mara Benvegnu, no terceiro capítulo de sua dissertação, sob o título de “A LUTA DE DOIS CALIFAS”: CÉSAR SANTOS E DANIEL DIPP. Foi uma amostra (até no nome) do que aconteceria nacionalmente pouco depois com a organização do Movimento Trabalhista Renovador, sob a liderança do deputado federal Fernando Ferrari.
Para a autora de Décadas de Poder: O PTB e a ação de César Santos na Metrópole da Serra 1945-1967 essa divisão marca o declínio do trabalhismo no município. Mesmo assim, os trabalhistas repetiram sua bancada de 8 vereadores. O Partido Trabalhista Nacional, sob o qual se abrigaram alguns “rebeldes”, como Romeu Martinelli e Justiniano Augusto de Araújo Trein, e que foram eleitos “representantes” daquele famoso “partido de aluguel”. O Partido Social Progressista repetiu também sua bancada de dois vereadores; o Partido Democrata Cristão aparece com um edil e o Partido Social Democrático, continuou sua queda vertiginosa, elegendo um único vereador.

Nº Nome Legenda Votos Situação
Para Prefeito
1 Benoni Rosado PTB 9.504 Eleito
2 Mário Menegaz MRT 6.930
3 Antonio Bittencourt Azambuja CDP 2.661
Para Vice-prefeito
4 Sinval Bernardon PTB 8.487 Eleito
5 Daniel Dipp MRT 4.292
6 Anildo Sarturi CDP 5.896

Essa era a situação política local quando, a 25 de agosto de 1961, a Nação foi surpreendida com a renúncia do presidente Jânio da Silva Quadros. Como aconteceu nos demais pontos do Rio Grande do Sul, as forças partidárias locais se uniram em torno da legalidade, do respeito à Constituição de 1946, o que significava a posse do vice-presidente João Goulart, o substituto legal do presidente demissionário, na forma da Carta Magna.
Se o trabalhismo é, como pensam muitos estudiosos da história das idéias no Brasil, uma continuidade do positivismo e do castilhismo, em Passo Fundo, esse entendimento se apresenta mais claro. Os trabalhistas encontrarão em O Nacional, o jornal criado pelos filhos do Coronel Gervasio Annes, o seu porta-voz e nos herdeiros políticos do velho comandante pica-pau na Revolução da Degola, os seus primeiros líderes. E veremos, na Campanha da Legalidade, o comandando de Irma Helena Salton, neta daquele coronel castilhista.
Durante o regime militar, iniciado em 1º de abril de 1964, com a deposição do presidente João Goulart, os velhos trabalhistas e seus aliados ingressarão no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o “guarda-chuva” das oposições, enquanto os “rebeldes” do Movimento Trabalhista Renovador (MTR), à exceção de Daniel Dipp e uns poucos mais, filiar-se-ão à Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Esta englobará os mais diferentes grupos conservadores, antitrabalhistas e antipositivistas, desde os liberais aos herdeiros do integralismo, conhecido como “fascismo caboclo”.
Sobre as alianças ou ligações entre liberais e fascistas existe um estudo clássico de Reinhard Kühnl intitulado Liberalismo y fascismo. Dos formas de domínio burguês (Barcelona: Fontanella, 1978).
Não é à toa que, na eleição de 15 de novembro de l982, as primeiras realizadas depois da redemocratização, o candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Rudah Jorge, tendo como vice o jovem João Leonel Stery, sobrinho de Leonel Brizola, individualmente, foi o mais votado. Perdeu, no cômputo dos votos, para os candidatos do Partido Democrático Social, sucedâneo da extinta ARENA, Fernando Machado Carrion, que foi eleito, e Juarez Paulo Zílio. Os trabalhistas superaram todos os demais candidatos, inclusive, João Carlos Bona Garcia, ex-guerrilheiro, e Sinval Bernardon, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, continuador do “guarda-chuva” emedebista.
No pleito seguinte, a 15 de novembro de 1988, Airton Lângaro Dipp, filho de Daniel Dipp, elegeu-se prefeito trabalhista, contando como vice-prefeito, com Carlos Armando Salton, bisneto do Coronel Gervazio, que sucedeu Airton, na prefeitura, no momento em que este renunciou para assumir uma Secretaria de Estado. Na eleição seguinte (15 de novembro de 1992), Carlos Armando Salton perdeu a eleição para prefeito para Osvaldo Gomes, do PMDB, por apenas 65 votos, numa disputa em que o candidato trabalhista sofreu a mais escandalosa campanha de difamação já registrada na história local. E Airton Lângaro Dipp, sempre apoiado pelos bisnetos do castilhista histórico, transformou-se no verdadeiro líder máximo e incontestável do trabalhismo local. Retornou à chefia de Passo Fundo por mais duas vezes, em 2004 e 2008.

2. A CAMPANHA DA LEGALIDADE EM PASSO FUNDO

A notícia da renúncia do presidente Jânio Quadros, ocorrida no dia 25 de agosto de 1961, caiu como uma bomba sobre Passo Fundo. Quando, na manhã seguinte, a imprensa local estampava a carta de renúncia encaminhada ao deputado Ranieri Mazzilli e as razões deixadas com Oscar Pedroso Horta, ministro da Justiça e Negócios Interiores, ambos os documentos eram lidos e discutidos avidamente nos bares, cafés e empresas da cidade.
Os movimentos dos partidos conservadores e de elementos denominados “reacionários” movimentaram-se tentando impedir a posse do vice-presidente João Goulart (Jango), que estava em viagem oficial ao exterior provocaram imediata reação no Rio Grande do Sul. Leonel Brizola, governador do Estado, companheiro partidário e cunhado do vice-presidente, comandou uma resistência àquilo que considerava um golpe de estado. Essa resistência, que ficou conhecida como Campanha da Legalidade, mobilizou a maioria das forças políticas rio-grandenses.

TRADIÇÃO REVOLUCIONÁRIA

Passo Fundo tem uma tradição de envolvimento nos acontecimentos políticos, desde o tempo da Revolução Farroupilha (1835/1845), em que as duas principais lideranças locais, o fundador, Manuel José das Neves, mais conhecido como Cabo Neves, e o agente do poder político provincial (estadual), Joaquim Fagundes dos Reis, tomaram lados diferentes. O Cabo Neves aderiu à causa imperial e Fagundes dos Reis, possivelmente integrante de um núcleo maçônico existente na pequena comunidade, tornou-se capitão das forças revolucionárias sendo, inclusive, preso e remetido para o Rio de Janeiro. Essa tradição continuou durante as guerras contra o Uruguai e a Argentina, depois do término da Guerra dos Farrapos, e com o envio de elevado número de combatentes que fizeram toda – literalmente toda – a campanha contra o Paraguai.
Durante a Revolução Federalista (1893/1895) a maior parte da população postou-se sob o comando de Antônio Ferreira Prestes Guimarães, proclamado general pelos maragatos de Passo Fundo, Soledade e Palmeira das Missões, os três mais importantes centros revolucionários da metade norte rio-grandense. Em solo passo-fundense foram travados diversos combates com elevado número de mortos, inclusive o maior evento bélico da “Revolução da Degola”, a Batalha do Pulador (27/06/1893), na qual foi decidida a sorte daquela guerra fratricida, e onde morreram mais de mil combatentes.
Três décadas depois, aqui teve início a Revolução de 23. Os libertadores cercaram e entraram na cidade, sobrando raros pontos de resistência oficial. Poucos anos depois, em outubro de 1930, enquanto a Brigada Militar tomava do Quartel do Exército sediado em Passo Fundo, velhos guerrilheiros maragatos e libertadores, que apoiaram a candidatura de Getúlio Vargas ao governo federal, comandavam e formaram a vanguarda das forças revolucionárias que, atravessando Santa Catarina, foram enfrentar as tropas oficiais em confrontos memoráveis em solo paulista.
Às 15h30min do dia 13 de agosto de 1961 falecia em Porto Alegre, aos 77 anos, o veterano guerrilheiro libertador capitão Antonio Quim César, um dos responsáveis pelo cerco de Passo Fundo, em 1923, e pela tomada do 8º RI, a 3 de outubro de 1930. Se vivo estivesse, com certeza, teria participado da Campanha da Legalidade, ao lado de antigos companheiros, possivelmente “voando” para sua terra natal.
Em 1932, a conclamação paulista, para que o Brasil retomasse o caminho da legalidade, proposta nos discursos dos líderes liberais, calou fundo na população passo-fundense. Muitas de suas lideranças, como o médico Nicolau de Araújo Vergueiro, velho cacique do Partido Republicano Rio-Grandense, uniram-se aos descontentes. Diversos, como o jornalista Túlio Fontoura, fundador do tradicional Diário da Manhã, não relutaram em pegar em armas, sob o comando do coronel Cândido Carneiro Júnior (General Candoca), envolvendo-se no conhecido Combate do Passo do Fão.
Nos dias difíceis de 1932, temendo o descontentamento dos velhos castilhistas, descontentes com Getúlio Vargas, como Nicolau de Araújo Vergueiro, Passo Fundo chegou a ser ocupada pelos temíveis pés-no-chão. Era o medo de uma sublevação local, justificada pelos acontecimentos do recente 3 de outubro.

A RENÚNCIA DE JÂNIO QUADROS

No dia 26 de agosto, nos bares, cafés, nas empresas, nas casas e nas ruas, as pessoas se aglutinavam, onde quer que alguém portasse um jornal, com o ofício que o presidente Jânio da Silva Quadros, fizera chegar às mãos do presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, nos seguintes termos:
“Ao Congresso Nacional.
Nesta data, e por este instrumento, deixando com o Ministro da Justiça as razões de meu ato, renuncio ao mandato de Presidente da República.
Jânio Quadros.
Brasília, 25-8-61.”
“As razões”, também deixadas com Oscar Pedroso Horta, ministro da Justiça e Negócios Interiores, estavam assim vazadas:
“Fui vencido pela reação e, assim, deixo o Governo. Nestes sete meses, cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido, dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem pretensões nem rancores. Mas, baldaram-se os meus esforços para conduzir esta Nação pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito o seu generoso povo.
Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia, que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive, do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração. Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas, e indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio, mesmo, que não manteria a própria paz pública. Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes e para os operários, para a grande família do País, esta página de minha vida, e da vida nacional. A mim, não falta a coragem da renúncia.
Saio com um agradecimento, e um apelo. O agradecimento é aos companheiros que, comigo, lutaram e me sustentaram, dentro e fora do Governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade.
O apelo é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios para todos; de todos para cada um.
Somente assim seremos dignos deste País, e do Mundo.
Somente assim seremos dignos da nossa herança e da nossa predestinação cristã.
Retorno, agora, a meu trabalho de advogado e professor.
Trabalhemos todos. Há muitas formas de servir nossa Pátria.
Brasília, 25-8-61.
Jânio Quadros”
“As razões da renúncia” é um documento requentado. É o mesmo que fora apresentado durante a campanha eleitoral de Jânio, com o qual chantageou as raposas da UDN. Jânio, como diria Odorico Paraguaçu era um “renuncista inveterado...”
As discussões eram acaloradas. Muitos lembravam a Carta Testamento de Getúlio Vargas. Quase todos sabiam de cor o documento. E comparavam o “... saio da vida para entrar na história”, do presidente suicida e este “Saio com um agradecimento, e um apelo.”, do presidente demissionário.
Para que, nós, agora à distância dos fatos e dos dois documentos, comparemo-los, segue a carta em que Vargas apresentava as razões de sua auto-eliminação física:
“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.
Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário-mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o Governo dentro da aspiral inflacionária que destruía os valores de trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Na declaração de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater a vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta.
Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto, O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.
Getúlio Vargas.”

A POSIÇÃO DOS VEREADORES PASSO-FUNDENSES

Os vereadores passo-fundenses, nesse dia imediato à renúncia de Jânio Quadros, tomavam uma posição bastante clara diante dos acontecimentos que mal começavam a desenrolar-se, conforme se vê do documento que fez publicar na imprensa local e que transcrevo a seguir:

“CÂMARA MUNICIPAL DE PASSO FUNDO

NOTA OFICIAL

A Câmara Municipal de Vereadores, reunida em sessão permanente, face à crise política nacional, deliberou tornar pública a seguinte
PROCLAMAÇÃO
1 – A renúncia do Presidente Jânio Quadros traumatizou a população brasileira que via em S. Exª. O arauto da independência política e econômica de nossa Pátria;
2 – O Presidente Jânio Quadros, nos sete meses de seu governo, imprimiu novas diretrizes a esta Nação, nos diversos setores de sua vida interna e formulou linhas mestras para a nossa política internacional, libertando-a de um anacronismo pernicioso e da influência maléfica de grupos nacionais e internacionais;
3 – Manifesta sua disposição de lutar e sua confiança em nossos homens públicos no sentido de que seja encontrada uma fórmula constitucional que permita ao Presidente Jânio Quadros concluir o mandato que o povo livre do Brasil lhe outorgou;
4 – A persistir a renúncia do Presidente, proclama ao povo de Passo Fundo, do Rio Grande e do Brasil, a sua inabalável decisão de lutar pela preservação da ordem constitucional, entregando-se o poder a quem de direito. Repele, por conseguinte, qualquer tentativa de golpe contra as instituições republicanas, partam de onde partirem;
5 – Apela aos estudantes, aos operários e ao povo de Passo Fundo, no sentido de que apóiem a atitude do órgão legislativo municipal, como legítimo representante da vontade popular. Ao mesmo tempo manifesta sua confiança no mesmo povo e nas autoridades para que sejam mantidas a ordem e a tranqüilidade públicas;
6 – A presente proclamação será transmitida ao Congresso Nacional, ao Sr. Presidente Interino da República, à Assembléia Legislativa e ao Sr. Governador do Estado.
Passo Fundo, 26 de agosto de 1961.
ADOLPHO RODRIGUES DE LARA – Vice-Presidente no exercício da Presidência
ERNESTO SCORTEGAGNA – 1º Secretário
PEDRO MONTEIRO DA COSTA – 2º Secretário e líder do PSP
WILSON GARAY – LÍDER DO PTB
PERY MARZULLO – líder da Coligação Democrática Passo-Fundense
AFFONSO SIMÕES PIRES – representante do PTN
JUAREZ TEIXEIRA DIEHL – líder do PDC
ODILON SOARES DE LIMA
BERNARDINO GUIMARÃES
DELMO ALVES XAVIER”

MOBILIZAÇÃO POPULAR

Ainda no sábado (27 de agosto) a Federação Universitária de Passo Fundo, às 20h30min, promovia um comício no Altar da Pátria. Falaram entre outros: Samuel Telles Zimmermann, Odilon Soares de Lima, Sólon Silva, Juarez Azevedo, Getúlio Palma, Pery Marzuello, Juarez Teixera Dihel, Dr. César Santos e o prefeito municipal, Benoni Rosado.
A mobilização era estimulada pelos discursos de Leonel Brizola, transmitidos pela Rede da Legalidade. Eram discursos como o que transcrevemos a seguir:
“Peço a vossa atenção para as comunicações que vou fazer. Muita atenção.
Atenção, povo de Porto Alegre! Atenção Rio Grande do Sul! Atenção Brasil!
Atenção meus patrícios, democratas e independentes, atenção para estas minhas palavras!
Em primeiro lugar, nenhuma escola deve funcionar em Porto Alegre. Fechem todas as escolas. Se alguma estiver aberta, fechem e mandem as crianças para junto de seus pais. Tudo em ordem. Tudo em calma. Tudo com serenidade e frieza. Mas mandem as crianças para casa.
Quanto ao trabalho, é uma iniciativa que cada um deve tomar, de acordo com o que julgar conveniente. Quanto às repartições públicas estaduais, nada há de anormal. Os serviços públicos terão o seu início normal, e os funcionários devem comparecer como habitualmente, muito embora o Estado tolerará qualquer falta que, porventura, se verificar no dia de hoje.
Hoje, nesta minha alocução, tenho os fatos mais graves a revelar. O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado numa cidadela, que há de ser heróica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização, da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos dos senhores, dos prepotentes. No Palácio Piratini, além da minha família e de alguns servidores civis e militares do meu gabinete, há um número bastante apreciável, mas apenas daqueles que nós julgamos indispensáveis ao funcionamento dos serviços da sede do Governo. Mas todos os que aqui se encontram estão de livre e espontânea vontade, como também grande número de amigos que aqui passou a noite conosco e retirou-se, hoje, por nossa imposição.
Aqui se encontram os contingentes que julgamos necessários, da gloriosa Brigada Militar – o Regimento Bento Gonçalves e outras forças. Reunimos aqui o armamento de que dispúnhamos. Não é muito, mas também não é pouco para aqui ficarmos preocupados frente aos acontecimentos. Queria que os meus patrícios do Rio Grande e toda a população de Porto Alegre, todos os meus conterrâneos do Brasil, todos os soldados da minha terra querida pudessem ver com seus olhos o espetáculo que se oferece.
Aqui nos encontramos e falamos por esta estação de rádio, que foi requisitada para o serviço de comunicação, a fim de manter a população informada e, com isso, auxiliar a paz e a manutenção da ordem. Falamos aqui do serviço de imprensa. Estamos rodeados por jornalistas, que teimam, também, em não se retirar, pedindo armas e elementos necessários para que cada um tenha oportunidade de ser também um voluntário, em defesa da legalidade.
Esta é a situação! Fatos os mais sérios quero levar ao conhecimento dos meus patrícios de todo o País, da América Latina e de todo o mundo. Primeiro: ao me sentar aqui, vindo diretamente da residência, onde me encontrava com minha família, acabava de receber a comunicação de que o ilustre General Machado Lopes, soldado do qual tenho a melhor impressão, me solicitou audiência para um entendimento. Já transmiti, aqui mesmo, antes de iniciar minha palestra, que logo a seguir receberei S. Exa. Com muito prazer, porque a discussão e o exame dos problemas é o meio que os homens civilizados utilizam para solucionar as crises. Mas pode ser que essa palestra não signifique uma simples visita de amigo. Que essa palestra não seja uma aliança entre o poder militar e o poder civil, para a defesa da ordem constitucional, do direito e da paz como se impõe neste momento, como defesa do povo, dos que trabalham e dos que produzem, dos estudantes e dos professores, dos juízes e dos agricultores, da família. Todos, até as nossas crianças desejam que o poder militar e o poder civil se identifiquem nesta hora para vivermos na legalidade. Pode significar, também, uma comunicação ao Governo do Estado da sua deposição. Quero vos dizer que será possível que eu não tenha oportunidade de falar-vos mais, comunicando esclarecimentos à população. Porque é natural que se ocorrer a eventualidade do ultimato, ocorrerão, também, conseqüências muito sérias. Porque nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores. O certo, porém, é que não será silenciada sem balas. Tanto aqui como nos transmissores estamos guardados por fortes contingentes da Brigada Militar.
Assim, meus amigos, meus conterrâneos e patrícios ficarão sabendo que esta rádio silenciou. Foi porque ela foi atingida pela destruição e porque isto ocorreu contra a nossa vontade. E quero vos dizer por que penso que chegamos a viver horas decisivas.
Muita atenção, meus conterrâneos, para esta comunicação. Ontem à noite o Sr. Ministro da Guerra, Marechal Odylio Denys, soldado no fim de sua carreira, com mais de 70 anos de idade, e que está adotando decisões das mais graves, as mais desatinadas, declarou através do “Repórter Esso” que não concorda com a posse do Sr. João Goulart, que não concorda que o Presidente constitucional do Brasil exerça suas funções legais! Porque, diz ele numa argumentação pueril e inaceitável, isso significa uma opção entre comunismo ou não. Isso é pueril, meus conterrâneos! Isso é pueril, meus patrícios! Não nos encontramos nesse dilema. Que vão essas ou aquelas doutrinas para onde quiserem. Não nos encontramos entre uma submissão à União Soviética ou aos Estados Unidos. Tenho uma posição inequívoca sobre isto. Mas tenho aquilo que falta a muitos anticomunistas exaltados deste País, que é a coragem de dizer que os Estados Unidos da América, protegendo seus monopólios e trustes, vão espoliando e explorando esta Nação sofrida e miserabilizada. Penso com independência. Não penso ao lado dos russos ou dos americanos. Penso pelo Brasil e pela República. Queremos um Brasil forte e independente. Não um Brasil escravo dos militaristas e dos trustes e monopólios norte-americanos. Nada temos com os russos. Mas nada temos com os americanos, que espoliam e mantêm nossa Pátria na pobreza, no analfabetismo e na miséria
Esses que muito elogiam a estratégia norte-americana querem submeter nosso povo a esse processo de esmagamento. Mas isso foi dito pelo Ministro da Guerra. Isso quer dizer que S. Exa. tomará todas as medidas contra o Rio Grande. Estou informado de que todos os aeroportos do Brasil, onde pousam aviões internacionais de grande porte, estão guarnecidos e com ordem de prender o Sr. João Goulart no momento da descida. Há pouco falei, pelo telefone, com o Sr. João Goulart, em Paris, e disse a ele que todas as nossas palestras de ontem foram censuradas. Tenho provas. Censuradas nos seus efeitos, mas a rigor. A companhia norte-americana dos telefones deve ter gravado e transmitido os termos de nossas conversas para essas forças de segurança. Hoje eu disse ao Sr. João Goulart: ‘Decides de acordo com o que julgares conveniente. Ou deves voar, como eu aconselho, para Brasília, ou para um ponto qualquer da América Latina. A decisão é tua! Deves vir diretamente a Brasília, correr o risco e pagar para ver. Vem. Toma um dos teus filhos nos braços. Desce sem revólver na cintura, como um homem civilizado. Vem como para um País culto e politizado como é o Brasil e não como se viesse para uma republiqueta, onde dominam os caudilhos, as oligarquias que se consideram todo-poderosas. Voa para o Uruguai, então, essa cidadela da liberdade, aqui pertinho de nós, e aqui traça os teus planos, como julgares conveniente’.
Vejam, meus conterrâneos, se não é loucura a decisão do Ministro da Guerra. Vejam, soldados do Brasil, soldados do III Exército! Comandante, General Machado Lopes! Oficiais, sargentos e praças do III Exército, guardiães da ordem da nossa Pátria. Vejam se não é loucura. Esse homem está doente! Esse homem está sofrendo de arteriosclerose ou outra coisa. A atitude do Marechal Odylio Denys é uma atitude contra o sentimento da Nação. Contra os estudantes e intelectuais, contra o povo, contra os trabalhadores, contra os professores, juízes, contra a Igreja. Ainda há pouco, conversando com S. Exa. Revma., Arcebispo D. Vicente Scherer, recebi a comunicação de que todos os cardeais do Brasil haviam decidido lançar proclamação pela paz, pela ordem legal, pela posse a quem constitucionalmente cabe governar o Brasil, pelo voto legítimo de seu povo. Essa proclamação está em curso pelo País. As igrejas protestantes, todas as seitas religiosas clamam por paz, pela ordem legal. Não é a ordem do cemitério ou a ordem dos bandidos. Queremos ordem civilizada, ordem jurídica, a ordem do respeito humano. É isso.
Vejam se não é desatino. Vejam se não é loucura o que vão fazer. Podem nos esmagar, num dado momento. Jogarão o País no caos. Ninguém os respeitará. Ninguém terá confiança nessa autoridade que será imposta, delegada de uma ditadura. Ninguém impedirá que este país, por todos os seus meios, se levante lutando pelo poder. Nas cidades do interior surgirão as guerrilhas para a defesa da honra e da dignidade, contra o que um louco e desatinado está querendo impor à família brasileira. Mas confio, ainda, que um homem como o General Machado Lopes, que é soldado, um homem que vive de seus deveres, com centenas, milhares de oficiais do Exército, como esta sargentada humilde, sabe que isso é uma loucura e um desatino e que cumpre salvar nossa Pátria. Tenho motivos para vos falar desta forma, vivendo a emoção deste momento, que talvez seja, para mim, a última oportunidade de me dirigir aos meus conterrâneos. Não aceitarei qualquer imposição.
Desde ontem organizamos um serviço de captação de notícias por todo o território nacional. É uma rede de radioamadores, num serviço organizado. Passamos a captar, aqui, as mensagens trocadas, mesmo em código e por teletipos, entre o III Exército e o Ministério da Guerra. As mais graves revelações quero vos transmitir. Ontem, por exemplo – vou ler rapidamente, porque talvez isso provoque a destruição desta rádio –, o Ministro da Guerra considerava que a preservação da ordem ‘só interessa o Governador Brizola’. Então, o Exército é agente da desordem, soldados do Brasil?! É outra prova da loucura! Diz o texto: ‘É necessário a firmeza do III Exército para que não cresça a força do inimigo potencial’.
Eu sou inimigo, meus conterrâneos?! Estou sendo considerado inimigo, meus patrícios, quando só o que queremos é ordem e paz. Assim como esta, uma série de outras rádios foi captada até no Estado do Paraná, e aqui as recebemos por telefone, de toda a parte. Mais de cem pessoas telefonaram e confirmaram. Vejam o que diz o General Orlando Geisel, de ordem do Marechal Odylio Denys, ao III Exército: ‘Deve o Comandante do III Exército impedir a ação que vem desenvolvendo o Governador Brizola’; ‘deve promover o deslocamento de tropas e outras medidas que tratem de restituir o respeito ao Exército’; ‘faça convergir contra Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente’; ‘a Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for necessário’; ‘está a caminho do Rio Grande uma força-tarefa da Marinha de Guerra’, e ‘mande dizer qual o reforço de que precisa’. Diz mais o General Geisel: ‘Insisto que a gravidade da situação nacional decorre, ainda, da situação do Rio Grande do Sul, por não terem, ainda, sido cumpridas as ordens enviadas para coibir a ação do Governador Brizola’.
Era isto, meus conterrâneos. Estamos aqui prestes a sofrer a destruição. Devem convergir sobre nós forças militares para nos destruir, segundo determinação do Ministro da Guerra. Mas tenho confiança no cumprimento do dever dos soldados, oficiais e sargentos, especialmente do General Machado Lopes, que, esperamos, não decepcionará a opinião gaúcha. Assuma, aqui, o papel histórico que lhe cabe. Imponha ordem neste País. Que não se intimide ante os atos de banditismo e vandalismo, ante esse crime contra a população civil, contra as autoridades. É uma loucura.
Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser moto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo!
Um abraço, meu povo querido! Se não puder falar mais, será porque não me foi possível! Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever.”

MANIFESTO E PRISÃO DO MARECHAL HENRIQUE TEIXEIRA LOTT

O jornal O Nacional de 28 de agosto de 1.961, abria a primeira página, em letras garrafais, com a manchete: P. Alegre em pé de guerra!. Transcrevia carta do general Henrique Teixeira Lott apoiando a posse de João Goulart, em lugar de Jânio Quadros e anunciava que aviões da Força Aérea Brasileira receberam ordens para bombardear o Palácio Piratini, mas os pilotos se negaram a obedecer a essa determinação superior e que o III Exército estava ao lado de Jango. Divulgava dramático discurso do governador Leonel Brizola, transcrito um pouco mais adiante.
A Câmara de Vereadores de Passo Fundo funcionava em sessão permanente. Suas dependências foram abertas à comunidade. Enquanto isso, o 2º Batalhão Policial, da Brigada Militar, guarnecia os pontos estratégicos da cidade.
Nesse mesmo dia, distribuído pela Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul era publicado um manifesto do marechal Henrique Teixeira Lott, que concorrera à Presidência da República, encabeçando a chapa que tinha João Goulart como candidato a vice-presidente. Em razão da legislação eleitoral da época, foram eleitos o candidato mais votado para presidente (Jânio Quadros) e o candidato a vice-presidente que alcançou o maior número de votos (João Goulart). Em consequência desse documento Lott acabou preso. O manifesto estava vazado nos seguintes termos:
“Aos meus camaradas das Forças Armadas e ao povo brasileiro.
Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do Senhor Ministro da Guerra, Marechal Odylio Denys, manifestada ao representante do governo do Rio Grande do Sul, deputado Rui Ramos, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o atual Presidente da República, Sr. João Goulart, entre no exercício de suas funções, e ainda, de detê-lo no momento em que pise no território nacional.
Mediante ligação telefônica, tentei demover aquele eminente colega da prática de semelhante violência, sem obter resultado. Embora afastado das atividades militares, mantenho um compromisso de honra com a minha classe, com a minha pátria e as suas instituições democráticas e constitucionais. E, por isso, sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação.
Dentro dessa orientação, conclamo todas as forças vivas do país, as forças da produção e do pensamento, dos estudantes e intelectuais, dos operários e do povo em geral, para tomar posição decisiva e enérgica no respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo ainda de que os méis camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam sua história no destino da Pátria.
Henrique Teixeira Lott”

OUTRO DISCURSO DE BRIZOLA

E, ainda nessa data, outro documento foi lido avidamente pelos passo-fundenses. Era um discurso de Leonel Brizola, proferido em plena madrugada pela Rede da Legalidade. Através dele o manifesto do marechal Henrique Teixeira Lott chegou aos mais distantes recantos do país e do exterior. O governador gaúcho confirmava a autenticidade do documento escrito pelo chefe militar, já na reserva, pois era lido em meio às palavras do líder trabalhista.
O discurso foi ao ar pelas 2h30min da madrugada e pela manhã já circulava transcrito em O NACIONAL.
“A esta hora da noite, da madrugada decidi dirigir-me aos meus conterrâneos. Na verdade, o nosso país está vivendo horas muito tensas, horas dramáticas em face da situação política, desta lamentável situação, porque num país de quase setenta milhões de habitantes, que se diz progressista, num país das tradições do Brasil, é realmente de estarrecer que tenhamos de viver dias e momentos como estes. Quando se obscurece e de desconhece princípios de aplicação simples e de aplicação imperativa como são os princípios constitucionais. Considero, meus conterrâneos, que vivemos realmente um momento delicadíssimo da vida nacional. Hoje não é mais a apreensão em torno da renúncia do Presidente Jânio Quadros. Está esclarecido que foi um ato de sua iniciativa, aceito e definitivo, por conseguinte, um fato consumado. Quem substitui o Presidente é o Vice-Presidente eleito. Pois bem, encontrando-se o Dr. João Goulart ausente do país, desempenhando missão no exterior, foi convocado para assumir a chefia do Governo da República e vem se dirigindo para o nosso país. Entretanto, a politicagem, os sentimentos inferiores golpistas de alguns círculos desta república, vêm sustentando que não se deva dar posse ao vice-presidente, ou melhor, que se deva impedir que o presidente constitucional do Brasil que neste momento já é o Sr. João Goulart, impedir que o presidente constitucional do nosso País exerça as suas funções.
Durante o dia de hoje, meus conterrâneos, deixando de lado o trabalho que todos devemos dar durante todos os instantes disponíveis para tratar exclusivamente dessa situação que, dramática por um lado, também tem aspectos ridículos, porque isto é uma demonstração de que em lugar de muitas crianças e de muitos adultos que não sabem ler, deveríamos fazer voltar para a escola muitos que se consideram dirigentes dessa nação. Deveriam começar a aprender o ABC de civismo para poder voltar a servir à Nação. Pois bem, durante todo o dia de hoje, aqui passei trabalhando, atuando em torno desse assunto, absorvido por ele, constantemente em ligação com o Rio e Brasília, procurando a confirmação daquilo que de início eram apenas rumores de que alguns círculos da capital da República tentavam impedir a posse do Vice-Presidente na Presidência da República. Agora, nas primeiras horas da noite, chegaram as primeiras confirmações desses fatos. Voltei ainda a insistir nos meus contatos junto à capital da República e o Rio de Janeiro para ter certeza de que na verdade essa circunstância estranha, tinha se processado.
E de fato, meus conterrâneos, círculos federais, não apenas da política e da politicagem, mas inclusive explorando e reunindo em torno dessas intenções macabras alguns chefes militares, fazendo pronunciamentos e expedindo notas, discutindo junto dos Gabinetes, custeados e pagos com o dinheiro do povo, visando a imposição de suas vontades impedindo que o presidente constitucional assuma as suas funções. Nem preciso referir, nas minhas considerações, outras provas desses fatos estranhos e desditosos para o nosso País, senão o manifesto que acaba de expedir para toda a Nação, o marechal Henrique Teixeira Lott que com sua autoridade moral, porque deste velho soldado pode se discordar, seja de suas ideias políticas, seja de suas atitudes, mas ninguém pode deixar de reconhecer nele um homem de grande gabarito e autoridade moral.
Pois bem, é o marechal Lott que se dirige aos seus companheiros e camaradas das forças armadas e ao povo brasileiro, deixando que tomou conhecimento no dia de hoje da decisão do Sr. Ministro da Guerra, marechal Odylio Denys, manifestando ao representante do governo do Rio Grande do Sul, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o atual presidente da República, Dr. João Goulart, atentem bem para estas palavras, que o atual presidente da República entre no exercício de suas funções e ainda de detê-lo, prendê-lo, no momento em que desembarcasse no território nacional. Mediante ligação telefônica, dizendo textualmente na sua mensagem, lerei... (Brizola lê o manifesto do marechal Henrique Teixeira Lott, acima transcrito). Diziam que este documento havia sido reexaminado por ele.
Eu informo a todos quantos me ouvem que este documento foi lido a mim pelo telefone pelo próprio marechal Lott, pedindo-me que procurasse divulgá-lo porque inclusive no Rio de Janeiro essas forças golpistas já estavam impondo censura a algumas emissoras, evitando o esclarecimento indispensável à população brasileira.
Dou, por conseguinte, autenticidade e assumo a responsabilidade sobre a origem e a autenticidade deste documento.
Dirijo-me agora aos meus conterrâneos, dizendo que diante desse fato nós, gaúchos, somente temos uma única posição a assumir. E esta é a posição deste Governo, desse Rio Grande que nunca se dobrou à imposição de ninguém, ainda mais àquelas imposições que rasgam as leis e as constituições do País. Nós, que governamos o Rio Grande do Sul, não aceitamos quaisquer golpes, não assistiremos passivamente quaisquer atentados às liberdades públicas e à ordem constitucional.
Reagiremos como estiver ao nosso alcance.
Nem que seja para sermos esmagados.
Mas defenderemos a honra e as nossas tradições. A constituição do País tem que ser respeitada.
E eu duvido muito que esses apelos ao golpe, como também nas ordens para que se execute o golpe encontrem guarida nos corações e nas consciências dos soldados da nossa pátria, daqueles que juraram defender a constituição e a ordem legal do nosso País.
Apelo aos meus conterrâneos para que todos observem a marcha dos acontecimentos, com absoluta calma, com segurança, com aquela segurança que somente têm os que estão cheios de razão. Observem também a posição que deverá assumir constantemente o governo do Estado.
Levo meu apelo a todas as forças vivas do meu Estado, as suas classes trabalhadoras, aos seus sindicatos, aos estudantes, ao povo e à população do interior, a essa gente humilde que não sabe o que é se submeter a uma humilhação e curvar a espinha.
Nós não queremos a desordem.
Nós queremos é a ordem e a paz.
Nós não queremos a anarquia.
Nós não queremos o caos.
Nós desejamos é o respeito ao princípio da autoridade e queremos a ordem legal, o império da lei e da Constituição. Que assumam a responsabilidade aqueles que têm a intenção e que pretendam atentar contra a ordem constituída.
Assumam a responsabilidade porque eles irão verificar que o povo e as autoridades públicas, que os professores, que os jornalistas, que os intelectuais, que os estudantes, que os trabalhadores, que os agricultores do interior, desde a estância humilde até o maior industrial da cidade não desejam e não querem o regime do arbítrio, o regime do abuso da autoridade, em nosso País.
Era isto que eu queria dizer, meus patrícios, dizendo também a todos que cada um procure tomar as medias que estiver ao seu alcance diante da eventualidade ou diante de qualquer iniciativa concreta de opressão, de violência contra a liberdade pública.
Daqui da sede deste Governo, da qual nós aqui permanecemos para a defesa, não apenas da honra do governo do Rio Grande, mas também daquilo que consideramos a própria dignidade nacional, isto é, a Constituição e decisão popular, a decisão tomada pelo voto livre e consciente do povo brasileiro.
O Dr. João Goulart, nesta altura, já é o presidente constitucional do Brasil.
Mesmo encontrando-se no exterior ele já é o presidente do Brasil e a sua autoridade tem que ser respeitada e acatada.
O Governo do Rio Grande, tenho certeza, falando em nome de seu povo, não pactua e não aceita e nem assistirá passivamente quaisquer golpes ou violências contra a ordem constituída, contra a ordem legal, contra a Constituição do País.
Confio na ação de meus conterrâneos. Tenho certeza que cada gaúcho saberá assumir a posição adequada nesse momento difícil da nossa Pátria.
Aguardemos os fatos, vigilantes e atentos.
Espero que estes homens que tiveram a coragem de lançar esta ofensa à face da Nação, espero que reexaminem esta atitude inaceitável, este desatino, que poderá, inclusive, trazer imensas dificuldades e sofrimentos ao povo brasileiro que temos o dever de servir, que poderá jogar este País no caos, desordem, uma luta sangrenta e na guerra civil.
Atenção, meus conterrâneos, muita atenção meus conterrâneos, muita atenção.
O governo do Estado resistirá a qualquer tentativa de golpe. Nós resistiremos com o que estiver ao nosso alcance, como pudermos, vivendo os mandamentos da nossa consciência e as inspirações do nosso patriotismo. Tenho certeza absoluta que o Rio Grande que nunca se deixou humilhar, que o Rio Grande que tem um passado que acompanha a nossa sombra, que o Rio Grande saberá estar, como todos os anos da sua história, à altura do momento nacional.
Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos, atentos. Voltem as atenções e os vossos olhos para os passos, para as iniciativas e para posições que o Governo do Estado deverá (tomar), por um imperativo de honra e dignidade, em face dos acontecimentos. Apelo que eu levo a ti, gaúcho do Rio Grande, a ti, brasileiro de outros estados que neste instante honra-nos ouvindo as nossas palavras, e a ti, soldado do Brasil, das nossas forças públicas, Exército, Marinha e Aeronáutica.
Atentem para a realidade que estamos vivendo, atentem para a gravidade desse momento.
Defendamos a ordem legal, defendamos a Constituição, defendamos a honra e a dignidade do povo brasileiro.”

A ORDEM PARA UM GENOCÍDIO

Um dos documentos mais vergonhosos da História do Brasil é o radiograma em que o general Orlando Geisel transmitiu ao general Machado Lopes, ordem do ministro da Guerra, general Odylio Denys, para que, numa ação combinada, Exército e Aeronáutica, bombardeassem o Palácio Piratini. O documento foi preservado pelo então comandante do III Exército e transcrito às páginas 47 e 48 de seu livro O III EXÉRCITO NA CRISE DA RENÚNCIA DE JÂNIO QUADROS (Rio de Janeiro: Tipo Editor Ltda, 1979):
“1 – O General Orlando Geisel transmite ao General Machado Lopes, Comandante do III Exército, a seguinte ordem do Ministro da Guerra:
O III Exército deve compelir imediatamente o Sr. Leonel Brizola, a por termo à ação subversiva, que vem desenvolvendo e que se traduz pelo deslocamento e concentração de tropas e outras medidas que competem, exclusivamente, às Forças Armadas.
O Governador colocou-se assim fora da legalidade. O Comando do III Exército atue com máxima energia e presteza.
2 – Faça convergir sobre Porto Alegre toda tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente, inclusive a 5ª DI, se necessário.
3 – Empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o Bombardeio, se necessário. (o grifo é nosso).
4 – Está a caminho do Rio Grande do Sul uma Força-Tarefa da Marinha.
5 – Qual o reforço de tropa que necessita?
6 – Aqui há um boato que o general Murici viria ao Rio.
O Ministro da Guerra confia em que a tropa do III Exército cumprirá o seu dever”.
Caso o III Exército e a Aeronáutica houvessem cumprido essa ordem criminosa a mortandade seria enorme. Grande quantidade de pessoas se encontravam no palácio, ao lado do governador, e milhares de pessoas se aglomeravam na “praça da Matriz” e adjascências. E outras dezenas de milhares acorreram ao Centro de Porto Alegre, assim que souberam da ameaça à Legalidade. Os aviões da Força Aérea Brasileira já eram aparelhos antigos, sem precisão de tiro. Seguramente, suas bombas provocariam um número incalculável de vítimas civis.
O general machado Lopes reuniu seu estado-maior e os generais Peri Beviláqua e Sílvio Américo da Rosa, que decidiram não mais acatar as ordens do ministro da Guerra, enquanto isso, os sargentos e outras praças de pré da Força Aérea Brasileira, tomaram medidas para que os aviões não decolassem, impedindo que a determinação fascinorosa dos seus comandantes fosse cumprida pelos pilotos fiéis aos gorilas, como eram chamados os golpistas.
A adesão do general José Machado Lopes e de praticamente todos os seus subordinados ao movimento que exigia o respeito à constituição foi fundamental para que a legalidade fosse cumprida, em termos.
Em termos, porque a implantação do Parlamentarismo, através de emenda constitucional, evitou o choque bélico que se prenunciava.

O APOIO DE ERICO VERISSIMO

Erico Verissimo foi e continua sendo um escritor controverso. A geração de que fez parte esteve dividida em dois lados inconciliáveis: ou o escritor era revolucionário ou conservador. O autor de O Tempo e o Vento, que se autodefinia como “um contador de histórias” apanhava. E continua apanhando dos dois lados. Para uns não passava de um escritor alienado que praticava uma literatura consumível; um alienado ou até um reacionário; para outros um socialista ou um “inocente útil”, a serviço do comunismo internacional.
Na verdade Erico sempre foi, mesmo, “um contador de histórias”. E essa é a função do verdadeiro ficcionista, enquanto ficcionista.
Erico não aceitou a ditadura estado-novista de Getúlio Vargas. E tanto não a aceitou que autoexilou-se nos Estados Unidos. Pouco antes de mudar-se para aquele país percorreu o interior do Rio Grande do Sul pronunciando conferências. A última delas foi exatamente em Passo Fundo, no Grêmio Passo-Fundense de Letras, atual Academia Passo-Fundense de Letras. Nem os anais do sodalício, nem a imprensa daqueles dias registraram o conteúdo de suas palavras. De concreto, restou apenas que o presidente do Grêmio, advogado Celso da Cunha Fiori foi chamado à delegacia de polícia para dar explicações, fazendo-se representar pelo também “gremista”, como à época se autointitulavam os atuais acadêmicos, e advogado Verdi De Césaro. Ambos eram velhos conhecidos da polícia política local, pois integraram os quadros da Aliança Nacional Libertadora, liderada nacionalmente, nada mais nada menos do que pelo temível Luis Carlos Prestes.
No dia 29 de agosto de 1961 Erico Verissimo, em mensagem enviada ao general José Machado Lopes, comandante do III Exército, declarou seu apoio à Campanha da Legalidade, correspondência, publicada em O NACIONAL, daquela data:
“Queira o ilustre amigo aceitar meus cumprimentos e minha solidariedade pela posição justa e corajosa que tomou em face dos acontecimentos políticos desta hora. Todos acreditam que até uma democracia imperfeita é preferível a qualquer ditadura. A constituição deve ser respeitada e o vice-presidente empossado. Quero, também, que tudo isso sirva de lição para aqueles que, embora clamem hoje pela legalidade, no passado apoiaram golpes e desrespeitaram a Constituição quando isso lhes conveio. Creia na estima e admiração deste seu compatriota.
Erico Verissimo”
Era o acerto de contas do escritor, vítima do Estado Novo, com os trabalhistas que “apoiaram golpes e desrespeitaram a Constituição quando isso lhes conveio”. Palavras estas, que ficam claro quando sabemos das consequências advindas para os “imortais de Passo Fundo” que o receberam às vésperas de sua mudança, com família e tudo, para os Estados Unidos.
A 29 de agosto a Liga de Defesa Nacional, presidida pelo professor Sabino Santos, escritor e membro da Academia Passo-Fundense de Letras, anunciava a suspensão das comemorações da Semana da Pátria. No dia seguinte o Centro Acadêmico “Carlos Gomes”, presidido por Estelita Maris Marcondes se solidarizava com o movimento. Desde o dia anterior, na Câmara de Vereadores, o Comitê Feminino Pró-Legalidade abriu voluntariado para quem quisesse se alistar para defender a posse de João Goulart e o respeito à Constituição.
Dentre os partidos conservadores, apenas o Partido Democrata Cristão (PDC) liderado pelo médico Arnildo Sarturi, botava as manguinhas de fora, defendendo a legalidade com o regresso de Jango ao governo.
O dia 30 de agosto foi tenso em Porto Alegre e em todo o Estado. À noite esperava-se um ataque aéreo contra o Palácio Piratini, em cujas janelas foram instaladas metralhadoras antiaéreas. Enquanto isso, cerca de 40 mil pessoas se concentravam na frente da sede do governo estadual para aplaudir a tomada de posição do general Machado Lopes.
Em Passo Fundo a mobilização era intensa.

TRADICIONALISTAS EM AÇÃO

O Centro de Tradições Gaúchas Lalau Miranda, um dos mais antigos do Estado, com um quadro social do qual faziam parte as mais expressivas personalidades do município, tanto da área urbana, quando da ainda vasta zona rural, tomava posição firme em torno da Legalidade.
O patrão, Eleodoro Antunes Fernandes, conhecido comerciante, e o sota capataz, Ramenti De Césaro, integrante de conhecida família de imigrantes italianos, representando a opinião dos sócios, enviava o telegrama seguinte ao primeiro mandatário do Estado:
“Governador Leonel Brizola
Palácio Piratini
Porto Alegre
O Centro de Tradições Gaúchas “Lalau Miranda”, cônscio de suas responsabilidades ante o momento em que a nação atravessa, manifesta-se, neste instante, em defesa da ordem constitucional do país, pugnando pela democracia e salvaguardando os direitos inalienáveis do povo. Expressa a V. Ex.ª Calorosos aplausos pela atitude assumida, tendo em mira o pleno respeito à Legalidade.
Os tradicionalistas de Passo Fundo, fieis aos ideais de liberdade, legados por seus antepassados, jamais se afastarão do roteiro do seu glorioso destino, colocando-se em posição de vanguarda, honrando os feitos inapagáveis de nossa gente.
Nesta hora grave da nacionalidade, o Rio Grande do Sul mantém-se como sentinela avançada da Pátria e este CTG saberá cumprir a expressão máxima de sua legenda ‘Em qualquer chão, sempre gaúcho pelo bem do Brasil’.
ELEODORO ANTUNES FERNANDES – Patrão
RAMENTI DE CESARO – Sota Capataz”

Mas não ficava nisso. Através de “manifesto” publicado na imprensa, no dia seguinte, conclamava a população passo-fundense a apoiar o movimento que já se tornava cívico-miliar, conforme se pode ver a seguir:
“Centro de Tradições Gaúchas ‘Lalau Miranda’

MANIFESTO

O Centro de Tradições Gaúchas ‘LALAU MIRANDA’, sentindo nitidamente a grave crise porque passa a Pátria querida e sem desmentir o passado de honra e lutas históricas dos heróis gaúchos deste torrão farroupilha, em prol dos ideais de liberdade, manifesta-se publicamente solidário com os defensores da legalidade e do respeito impostergável à Constituição vigente da República Brasileira.
Sente-se no dever patriótico de, nesta crítica contingência, conclamar todos os gaúchos cultores da bravura legendária do grande Gal. Bento Gonçalves da Silva, a que fiquem atentos a qualquer chamamento em defesa das liberdades individuais e democráticas da Pátria comum.
Outrossim, torna público já ter se manifestado solidário ao Palácio Piratini, ‘Cidadela da Legalidade’, através de vibrante mensagem fonográfica.
Fieis como sempre ao legendário Rio Grande, ficamos atentos ao nosso lema: ‘Em qualquer chão, sempre gaúcho pelo bem do Brasil’.
ELEODORO ANTUNES FERNANDES – Patrão
RAMENTI DE CÉSARO – Sota Capataz”

FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL

Ao mesmo tempo, uma comissão de funcionários da agência local do Banco do Brasil declarava “solidariedade ao movimento legalista”. Os funcionários do Banco do Brasil, à época, formavam uma categoria altamente conceituada em qualquer comunidade onde se fizesse presente. Numa época em que se dava grande valor ao casamento, enquanto elemento que garantisse estabilidade à mulher e os filhos, os funcionários desse banco oficial eram reconhecidos como ótimos partidos para as mocinhas casadoiras.
Quando lemos o rol dos signatários encontramos nomes que se destacariam nos meios empresariais e intelectuais de Passo Fundo. Eis os termos em que foi vazado o telegrama dirigido ao governador do Estado:
“Governador Leonel Brizola – Palácio Piratini – PORTO ALEGRE
Orgulhosos com a corajosa atitude de V. Ex.ª, em defesa da Constituição, hipotecamos solidariedade ao movimento legalista. Entendemos que deve estar nos desígnios do movimento a reintegração do Presidente Jânio Quadros, no caso de que sua renúncia tenha sido forçada. Saudações.
GRUPO DE FUNCIONARIOS DO BANCO DO BRASIL DE PASSO FUNDO
(aa) Armando Ferreira da Silva – José Catarino Ferreira – Heinz Beor – Azir Truccolo – Nelson Serpa - José Artur Alvarenga – Dyógenes Martins Pinto – Pery Marzzullo – Waldir Marques – Celso Reschke – Gentil Alves de Castro – Rosalino José Galli – Luiz Juarez de Azevedo – Waldomiro Marcon – Francisco G. da Silva – Roberto Schaan Filho – Roberto Leyser – Rogério Fabiano dos Santos – Romeu Terres de Azeredo – Luiz Ayres Correia – Jorge Garcia Portugal – Aivo Fernandes Rodrigues – Jairo Serrano – Cláudio Camargo – Berecy Garay – Nereu Patussi – Abel Meira – Luiz Dario Zasso – Toyoili Kondo – Ângelo Romualdo de Felippo – Waldemar P. Carvalho – Paulo C. Lima – Celso Meira – Edson Sperry Winckler – Claud B. Marques – Lucindo Costamilan – Décio Bertolin – Alberto Rebonatto – João Fidelis Warken – Reinaldo Zimmermann – Adauto V. Diniz.”

A MULHER PASSO-FUNDENSE

Em Passo Fundo, a mulher teve um papel importante na Campanha da Legalidade. Mulheres de todas as classes sociais envolveram-se no movimento, destacando-se a liderança de Irma Helena Salton, presidente da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Seu avô, coronel Gervasio Luccas Annes, foi o líder do Partido Conservador, em Passo Fundo, durante o Império. Aderiu ao Partido Republicano Rio-Grandense, antes mesmo da Proclamação da República e tornou-se uma das maiores lideranças castilhistas da região. Intendente, combateu, no posto de coronel, a Revolução Federalista. Além de intendente (prefeito) do município foi deputado. O pai de Irma Helena Salton, Armando Annes, também foi intendente e deputado. Depois da Legalidade, seu esposo Wolmar Antonio Salton, e seu filho, Carlos Armando Salton, exerceram mandatos de prefeito.
Irma Helena Salton chefiou também a Comissão Central do Comitê Feminino Pró-Legalidade. Este, montou núcleos nos principais bairros e vilas de Passo Fundo. Com certeza, a matriarca dos Annes Salton, empregava as lições recebidas das mulheres mais velhas, durante as revoluções de 93 e 23, em que sua família paterna exerceu papel preponderante.
Esse apelo ao heroísmo e à “herança farroupilha” é o que transpiram os telegramas seguintes:

“Congresso Nacional – Brasília – A mulher passo-fundense confia no critério da justiça e respeito à gloriosa Constituição e apela pela manutenção da democracia, aplaudindo a firmeza na decisão de acatamento à legalidade. Por um Brasil melhor.”

“Assembléia Legislativa – Porto Alegre – A mulher passo-fundense vibra com a atitude desassombrada e patriótica tomada em defesa da legalidade. Depositamos confiança em vossas decisões, acima dos interesses partidários.”

“Comandante do III Exército – Porto Alegre – As mães, esposas e irmãs aplaudem a atitude tomada em defesa da legalidade, evitando o derramamento do precioso sangue dos homens do Rio Grande.”

“Governador do Estado – Palácio Piratini – Porto Alegre – O sangue farroupilha vibra em nossos corações, aplaudindo a heróica atitude de V. Ex.ª, exemplo de brasilidade, demonstrando, mais uma vez, que o Rio Grande está de pé pelo Brasil.”
Ao mesmo tempo em que Irma Helena Salton, dirigente da LBA, asumia o comando da Comissão Central do Comitê Feminino Pró-Legalidade, Djanira Lângaro, que tivera papel importante na Cruz Vermelha, durante a II Guerra, volta à cena, com a mesma Cruz Vermelha, secundada pela professora Delma Rosendo Gehn. A Cruz Vermelha, instalada no andar térreo do Instituto de Belas Artes, na Avenida Brasil Oeste, passou a funcionar através de uma dezena de comissões, quais sejam: Comissão de medicamentos e emergência; Comissão de plantão permanente; Comissão de ataduras, lençóis, cobertores e maca; Comissão de enfermagem e guarda de matéria; Comissão de Transporte; Comissão de doadores de sangue; Comissão de alimentação; Comissão de cozinha; Comissão de limpeza e Comissão de voluntárias.
Já o Comitê Feminino Pró-Legalidade partia para a organização de núcleos nos principais bairros e vilas da Cidade. Era a colocação em prática de um plano para o envolvimento popular efetivo no movimento.
Eis, os Subcomitês Pró-Legalidade e suas respectivas “senhoras” coordenadoras: Vila Santa Maria: Flávia Menna Barreto; Vila Luiza: Maria Tereza Rache; Vila Schell: Teresinha Amaral; Vilas Rodrigues e Cruzeiro: Maria J. Quadros; Vila Vera Cruz: Ezilda Santos; Sapo (isto mesmo, Sapo, atual Vila União) e Operária: Ilda Amaral; Vila Santa Terezinha: Erbene O. Fachini; Vila Vergueiro: Rosa Maria Santos; Vila Petrópolis: Olga Poleto; Vila Costi e Exposição (atual Bairro São Cristóvão): Alice Costi; Vila Armando Annes: Licinia Couto; Vila Bairro São José: Zamar Goron; Vila Lucas Araújo: Nair Guimarães; Vila Independente: Morena Salem Aires; Vila Santa Maria: Dinah Portela; Vila Lângaro: Edla Castro; Vila Dona Elisa: Rita Santos e Vila Industrial: Laura Meirelles.
Essas coordenadorias de bairros deveriam seguir as seguintes instruções: esclarecimento sobre a situação e objetivos do movimento pró-legalidade, orientação da mulher e seu papel; endereço, nome, profissão do esposo, relação de filhos com a respectiva idade e a atividade da qual a mulher poderá participar (se cozinheira, costureira, enfermeira, etc.); condições de vida da família; outros elementos que julgar necessários serem tomados.
A mobilização das donas-de-casa passo-fundenses surtiu efeito. Em telegrama publicado no dia 6 de setembro, a presidente do Comitê Pró-Legalidade, Irma Helena Salton, relata o envolvimento de 2.000 mulheres de bairros e vilas de Passo Fundo.
“Governador Leonel Brizola – Palácio Piratini – Porto Alegre – Em face do pronunciamento do general comandante do glorioso III Exército, dirigindo um apelo aos seus camaradas, prenunciativo à Constituição, em nome do CM da LBA e do Comitê Feminino Pró-legalidade, venho, comunicar ao nosso intrépido Governador, baluarte da legalidade, que 400 donas de casa se encontram em plena ação pela Democracia e mais de 1.700 acham-se inscritas, aguardando o chamamento.
A mulher passo-fundense está a postos nessa luta decisiva para os destinos da Pátria e pela vigência das liberdades democráticas do nosso povo e do querido Brasil, embora confiante que a alta compreensão volte ao espírito dos responsáveis, esperando mães, esposas, filhas e noivas, que, finalmente, as armas que defenderão a Democracia não precisem falar. Tudo pela posse do Presidente! (a) Irmã Helena Salton – Presidente do Comitê Pró-Legalidade.”

APOIO DO FUTEBOL AMADOR

Essa proposta de penetração popular da Campanha da Legalidade encontrou eco entre os jogadores de futebol de várzea, amadores.
Do ponto de vista urbanístico, a Passo Fundo de 1961, era muitíssimo diferente da atual (2011). Em todos os bairros existiam grandes áreas baldias, onde meninos, rapazes e até circunspectos pais de família, jogavam futebol. E um grupo de dirigentes de clubes varzeanos, no primeiro dia de setembro, lançou um manifesto, entregue à Câmara de Vereadores.
“MANIFESTO

Os clubes de futebol varzeano de Passo Fundo, unidos com o Rio Grande legalista e com o Brasil democrata, manifestam de público solidariedade ao movimento de resistência democrática liderado pelo Exmo. Sr. Governador Leonel Brizola, com apoio do III Exército.
Pela garantia das liberdades individuais, pela democracia, pelo respeito ao voto popular, pela Constituição, manifestamos nossa conclamação a todos os filiados ao esporte varzeano de Passo Fundo, para que formem fileira, resolutamente, no movimento de resistência democrática, formando comitês de resistência democrática e contribuindo para mobilizar a opinião pública da totalidade de nossos conterrâneos para que o Rio Grande triunfe e o Brasil não se dobre ao golpe, à prepotência, à ilegalidade.
Passo Fundo, 1º de outubro de 1961.
Leopoldo D’Arienzo Filho – Natalino Dal’Piazze – Odone Formigheri – Ary Ribas – Leoclides Ferrão – Amadeu A. Martins – João Cardoso de Morais – Delmo Alves Xavier – Adílio Gonçalves”

A PARTICIPAÇÃO DAS IGREJAS

As igrejas cristãs, das mais diferentes confissões, desde o início, inseriram-se na Campanha da Legalidade. Dom Cláudio Colling, então bispo de Passo Fundo, que depois chegaria a arcebispo, era homem que deixou fama de político habilidoso. O manifesto, que lançou no dia 30 de agosto de 1961, é obra de verdadeira raposa. Nele não apóia o movimento da legalidade (diretamente), mas, sim, a “generosa iniciativa” das senhoras lideradas por Irma Helena Salton.
Nada havia de “generosidade” na “iniciativa” das mulheres passo-fundenses. A exemplo de suas ancestrais nos velhos tempos do Rio grande belicoso, elas agiam como um forte grupo de sustentação moral e material ao movimento de resistência militar em marcha. Leiamos o documento emitido por Dom Cláudio Colling:
“AO POVO DE PASSO FUNDO

Nesta hora conturbada da nossa amada Pátria, plenamente identificada com os sentidos de dolorosa apreensão dos nossos amados filhos, queremos fazer eco às palavras serenas e oportunas de Sua Ex.ª Dom Vicente Scherer, e conclamar a todos para em oração fervorosa e confiante, aguardarem a feliz superação da grave crise político-administrativa em que nos encontramos.
Como guia espiritual de nossa grei, asseguramos a todos perfeita assistência espiritual em qualquer eventualidade, contando para isso, com oferecimento espontâneo de diversos sacerdotes.
Louvamos também e apoiamos, dentro de nossas possibilidades, a generosa iniciativa de um grupo de senhoras de nossa melhor sociedade, que, sob a presidência da Ex.mª Sra. Irmã Helena Salton, mui digna representante da LBA em nossa cidade, tomou a si a espinhosa e caritativa tarefa de providenciar assistência às famílias passo-fundenses que eventualmente dela necessitarem.
Iniciativas desse gênero, inspiradas na mais lídima caridade cristã, contarão sempre com nossa incondicional solidariedade e sincero apoio, a se desdobrar em medidas concretas conforme as circunstâncias o exigirem.
Que Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil e da nossa amada Diocese, nos proteja nesta hora difícil e faça voltar a paz e a tranqüilidade a todos os lares de nossa estremecida Pátria.
Passo Fundo, aos 30 de agosto de 1961.
CLAUDIO COLLING Bispo de Passo Fundo”
As duas igrejas evangélicas mais atuantes do município, à época, a Metodista e a Assembléia de Deus, desde o primeiro momento, colocaram-se ao lado da Legalidade. Reuniram seus círculos de oração, formados por homens e mulheres dedicados a orarem continuamente. Mantiveram-se de portas abertas, orando dia e noite, no período mais árduo da crise e se solidarizaram publicamente com o movimento, conforme vemos nos documentos a seguir transcritos.

“Apoio da Igreja Evangélica Assembléia de Deus de Passo Fundo

Sendo solicitado apoio pela LBA e Comitê Feminino Pró Legalidade, venho por intermédio desta, dar minha irrestrita colaboração e assistência espiritual, em oração, o que, aliás, já estamos fazendo desde os primeiros momentos desta crise em que o Brasil está atravessando. E, também, no sentido social, dentro das nossas possibilidades, faremos tudo o que for possível para que se mantenha a ordem, a tranqüilidade e a paz, até que esta crise seja resolvida.
E, lembrando a todos, que acima de tudo devemos confiar em Deus, o Senhor de todas as Nações, que por sua benigna bondade derrame sobre nós suas bênçãos, afim de que os homens venham à razão pelo reconhecimento da verdade e da legalidade.
Conforme o salmista suplica no Salmo 121, versos 1 e 2: ‘Elevo os meus olhos para os montes; de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez o Céu e a Terra’.
Pela Igreja Evangélica Assembléia de Deus de Passo Fundo, Germano Domingos Zucchi – Pastor”
A Sociedade Metodista de Homens, de Passo Fundo, presidida por Luiz Gustavo Kuchenbecker, e secretariada por Avelino Simões, enviou telegrama ao governador Leonel Brizola hipotecando solidariedade. E o Reverendo Clory Trindade de Oliveira, superintendente distrital da Igreja, lançava um manifesto público sobre os acontecimentos cívico-militares do momento.

“Ao povo metodista, amigos e simpatizantes – Povo gaúcho

Amamos a Deus. Cremos na sua direção sobre os povos. Confiamos no seu amor, manifestado em Jesus Cristo. Respeitamos o governo legitimamente constituído. Acatamos a lei, a ordem e a constituição, impostergável carta magna brasileira.
Nesses dias de angústia e incerteza, quando o espectro da luta fratricida ameaça nossa gente; quando a desconfiança mina e destrói os melhores sentimentos; quando a própria civilização e cultura brasileira periclitam, endereçamos a todos os pastores metodistas, crentes, fieis e amigos, na qualidade de Superintendente do Distrito de Passo Fundo, da Igreja Metodista do Brasil, nas paróquias de Soledade, Carazinho, Lagoa Vermelha, Erechim, Passo Fundo – sim, levamos a todos, a nossa palavra de fé e esperança no destino democrático e vocação cristã, deste grande e glorioso país, o nosso querido Brasil.
A todos concitamos para que estejam em oração, rogando a Deus, Supremo Senhor deste mundo, que esclareça a mente e o coração de nossos governantes, homens do Congresso e Forças Armadas, a fim de que aceitem a solução pacífica para o grave problema que enfrentamos.
Queremos estudar, trabalhar e viver em paz; queremos legar aos nossos filhos um Brasil, não apenas grande, mas unido, ordeiro, pacífico e democrático, temente a Deus e Cristão.
Cumpra, pois, cada brasileiro o seu dever, o seu sagrado dever, amando a Deus sobre tudo e ao semelhante como a si mesmo.
Passo Fundo, 1º de setembro de 1961.
Rev. CLORY TRINDADE DE OLIVEIRA – Superintendente Distrital”

A MAÇONARIA

Os maçons têm exercido uma influência muito grande na história de Passo Fundo. Embora sejam desconhecidos registros públicos sobre isso, a primeira autoridade constituída que aqui se fixou, Joaquim Fagundes dos Reis, era maçon. Participou da Revolução Farroupilha (1835/1845), defendeu a República Rio-Grandense e foi preso. Remetido para o Rio de Janeiro, acabou libertado com dinheiro dos cofres daquela República. Maçons eram os homens que acertaram a emancipação de Passo Fundo de Cruz Alta.
No dia 5 de setembro, quando já estava definida a posse de João Goulart na Presidência da República acertada a implantação do parlamentarismo, os maçons passo-fudenses lançaram um duro manifesto, condenando a quebra da constitucionalidade que representava, no momento, aquela forma de governo.

“Loja Maçônica ‘Concórdia do Sul’

Proclamação

A Loja Maçônica ‘Concórdia do Sul’, como parte de uma milenar instituição que sempre batalhou pela liberdade dos povos, considerando que a integridade político-administrativa de nossa estremecida Pátria acaba de ser substancialmente ferida, vítima que foi de um golpe traiçoeiro pela esmagadora maioria da Câmara Federal, os quais agindo temerosos de perderem as rendosas posições, votaram contrariando, em princípio, o que estabelece o art. 217 § 5º, da própria Constituição Brasileira item este que diz textualmente: ‘Não se reformará a Constituição, na vigência do estado de sítio’, cuja existência não existia de direito, mas existia de fato, lança o seu veemente protesto e a sua repudia a tão vil ato praticado pelos pseudos representantes do povo.
Já disse Ruy Barbosa que ‘o direito da força jamais deve pairar acima da força do direito’ e alguém dias atrás assim se manifestou face à atual conjuntura: ‘depois de iniciado um jogo não se alteram as regras’, com o que concordamos.
Outras eleições teremos no futuro e é preciso que o povo esteja alerta para os conhecidos ‘cantos de sereia’ de tais ‘representantes de seus próprios interesses’.
Convém nesta oportunidade alertar para o seguinte: nem para a Maçonaria Brasileira e nem para a Loja Maçônica “Concórdia do Sul” em particular existem sistemas de governo como questões fechadas; apenas o que combatemos são os extremismos, tanto da direita como da esquerda. E, se vem de público externar o seu repúdio a tão ignominioso ato, o faz baseado nas circunstâncias de como foi ele praticado, ou seja, por representantes do povo que não estavam e nem estão credenciados para isso, como agindo ainda sob pressão de alguns ministros militares e temerosos de perderem as suas fofas e rendosas poltronas.
Nossa posição não tem nenhum sentido político, mas tão somente a salvaguarda de nossa constituição de 1946.
Viva a Liberdade!
Viva a causa da Legalidade!
Passo Fundo, 5 de setembro de 1961.
Arthur Süssenbach – Presidente
Paulo Rocha Duarte – Secretário”

HINO DA LEGALIDADE

Jairo Antônio Casalli, em seu livro Memórias de Brizola: O Guerreiro do Povo Brasileiro (Erechim, Gráfica São Cristóvão, 2005, p. 109), assim conta o surgimento do Hino da Legalidade, que acompanhava os pronunciamentos radiofônicos de Leonel Brizola:
“Brizola era muito pajeado pelos músicos e cantores populares, que lhe dedicavam décimas e prestavam-lhe largas homenagens nos eventos estaduais. Ele conhecia e sabia valorizar o dom e a abrangência da música. Por isso, não é de se espantar que durante a Campanha da Legalidade, tenha usado a música, especialmente a marcha, para concentrar o povo e motivar seus vassalos e tenha convidado músicos e compositores para compor o Hino da Legalidade.
Várias marchas foram compostas neste período, que continuaram a ser tocadas nos bailes e eventos do Sul, por muito tempo, porém, a preferida foi esta, cuja letra guardamos em nossos velhos, mas valiosos Diários. A autoria é dos compositores Demóstenes Gonsales, Lara Lemos e Paulo C. Pereio. Brizola, apenas sugeriu que se trocasse, na primeira estrofe, ‘Avante Gaúchos’ por ‘Avante Brasileiros’. Eis, o Hino:
“Avante brasileiros de pé...
Unidos pela liberdade.
Marchemos todos juntos
Com a bandeira que prega a lealdade.
Proteste contra o tirano...
E se recuse à traição,
Que um povo só é bem grande
Se for livre sua Nação!”
Uma dessas “várias marchas” compostas naquele período, a de autoria de Giuseppe Otávio, foi publicada em O Nacional, de 6 de setembro de 1961, 3ª página, dizendo que estava fazendo grande sucesso e seria gravado por um conhecido conjunto de Porto Alegre.

“Hino da Legalidade

Forças estranhas com garra traiçoeira
Infestaram a Pátria com golpe e traição
Sem brio e respeito à querida bandeira
De ordem e progresso à Constituição.

Eis que do Sul um brado gritante
Protesta veemente brutal violação
O gaúcho valente da terra gigante
Procura na vida sua própria razão.

Sem farsa, nem medo, impõe resistência
Confiante, sereno, com toda hombridade
À custa da vida e com a providência
Desfralda a bandeira da legalidade!”

Como se pode ver, o Hino da Legalidade acima é completamente diferente do hino escrito pela poetisa Lara de Lemos, a pedido do próprio Brizola, e que era executado sempre que o governador, através de cadeia radiofônica, se dirigia à população.

POESIA BELICOSA

Sob o pseudônimo de Inharandú Chaves, aparece no dia 31 de agosto um primeiro poema festejando a Campanha da Legalidade. O poeta, em versos de ocasião, forçando rimas, e estropiando a métrica, revela-se um adesista à legalidade. Com toda a certeza era originário das forças eleitorais que se opuseram à candidatura de Leonel Brizola ao governo do Estado. A posição combativa do governador, ante o esbulho que sofria o sucessor constitucional do presidente demissionário, despertou a solidariedade e a inspiração guerreira do nosso vate canhestro.

“Lapucha! Que Diversão!

Por INHAMANDÚ CHAVES

A bagunça está formada!
Gritamos chara-chá-chá!
Esse ‘Briza’ é uma parada!
Quem iria ‘imaginá’?!

Há tempo eu vinha dizendo
Que o ‘negócio’ ia ferver...
Meus palpites escrevendo
Mas em mim, quem ia crer?!

É o TEMPO – interessante!
Vinha forjando a evolução!
E um ‘piá’ que nasceu ontem,
Foi nossa revelação!

Pois desde um tempo, té então
Bem precisava o Brasil
Que aparecesse ‘um leão’
Líder jovem e varonil.

O Dennis ‘já está enchendo’
De dar golpe ‘no rasilho’!
O quarto já está valendo!
Contando o do Café Filho.

Mas o Rio Grande ‘mui mudo’
Desde o último caudilho,
Apresentou um ‘peitudo’
Que desafiou ‘o sarilho’.

Nasceu de peito saliente,
Guapo, ágil, varonil,
E ‘solito’, minha gente,
Levantou o meu Brasil!

Gaúcho ‘desabotinado’!
Desta nova geração
Enfrentou um potentado
Só com tal de ‘microfão’!

......................................

Eu que nem ‘ia’, com o ‘Briza’,
Por quizina e má feição...
A razão já me organiza
E até vou de coração.

E meu ‘provisa’ já ‘se esquece’
Ao comando do Carlinhos,
O Annes! Que te parece?
Prum ‘rodeio de tirinhos’!

Amanhã tem treinamento
De garrucha e de facão...
Tática – estrebuchamento...
Lapucha! Que diversão!

Salve a Brigada Gloriosa!
Salve Exército ‘Terceirão’!
Salve ‘Aeronáutica’ briosa!
Salve o nosso pelotão!”
Setembro começava com o PDC local, através de seu líder, Arnildo Sarturi, apoiando a introdução do parlamentarismo. Em todas as vilas e bairros já estavam organizados subcomitês femininos de defesa da Legalidade. As igrejas evangélicas manifestavam apoio à resistência e a Metodista, promovia vigílias, com orações dia e noite. E começava com a divulgação de outro poema (e não seria o último) do mesmo Inharandú Chaves, intitulado “Temo queí rapaziada!”:

“A estas horas, Gomercindo,
Pelo Mato do Barão,
Já tem ‘nego’ que vai indo...
Treinando... ‘camuflação’!?!

E tu poeta e trovador,
Deste nosso amado Estado,
Inflama! Faz-me o favor!
Quem tiver ‘meio esfriado’...

Pois teus versos de canário,
Nesta hora não estorva;
Muito pelo contrário!
São como cachaça e ‘pórva’!

Já arrumei lugar ‘prá cria’
Ficar durante a jornada...
Pois ‘meu índio’” me dizia:
Temo que í rapaziada’

............................

‘Afinar qu’é que nóis sêmu?
Nóis sêmu da Pátria Amada’”.

Em todas as “revoluções” é comum a figura do fujão. Na Campanha da Legalidade não foi diferente. Nosso poeta Inharandú conta que muitos fugiram para os matos. E teve até “gente perfumada”, isto é sujando-se com as próprias fezes de susto. Aliás, pouco tempo depois, em 1964, ficou famoso o caso de um vereador local que, ao receber voz de prisão, de um comando do Exército, necessitou banhar-se e trocar de roupas antes de seguir conduzido até o quartel do I/20 RC.

“Morro ou Mato!...

Inharandú Chaves

‘A quem – nem começou,
E já tem gente perfumada...’
Foi bem assim que falou
Uma crioula ‘enfezada’.

Comentava entre as amigas
Que a ouviam estupefatas,
Que nas fugas... até deu brigas,
Pois existem poucas matas...

Seus patrões – diziam elas –
‘Se alistaram’ de primeira...
Trancaram portas, janelas,
E se foram pra capueira...

E a ‘corrida’ pior ficou
Quando as tropas surgiram
Tem ‘home’ que desmaiou...
E outros já ssse...ssumiram.

Vi ‘um tal’ sair gritando,
Ligeiro que nem um gato;
Táxi! Táxi! Estou cheirando!
Me leve pro morro ou mato!...”

Inharandú Chaves, passado o período mais árduo da Campanha da Legalidade, lista três “causas” possíveis para a renúncia de Jânio Quadros, como vemos no poema seguinte:
“Indireitem essa porqueira!’

Inharandú Chaves

Renúncia envolta em mistério...
Com a opinião dividida!
Renúncia é motivo sério!
Isto sim ninguém duvida!

...................................

Mas três razões hipotéticas,
Conjecturando arranjei...
Todas elas são patéticas!
E a seguir, enunciarei.

PRIMEIRO: pressão dos trustes,
Aliada a outras razões:
Lacerda e seus embustes,
Chantagens, imposições...

SEGUNDO: um fato chocante,
Traumatiza o Ex-Presidente!
Um exame é o revelante
Dum câncer no olho doente!?!?!?!?

TERCEIRO: há quem comente,
Ser o Jânio ‘bom de pinga’...
E um ‘pileque’ eloqüente
Chama o ministério e xinga:

– Vocês não são é de nada!
Só falam bobagem! Asneira!
Se a política está errada,
Indireitem essa porqueira!’

Somente o Tempo dirá
O motivo verdadeiro!
E a razão revelará
– Brabo povo brasileiro!”

A POSIÇÃO DO PREFEITO

Não apenas os habitantes de Passo Fundo manifestavam predisposições guerreiras. Conterrâneos residentes em outros pontos do país se ofereciam como voluntários. Sirva de exemplo o telegrama recebido pelo prefeito trabalhista Benoni Rosado, de um veterano da Revolução de 30.
“Porto Alegre, 28 de agosto de 1961.
Prezado Amigo Benoni Rosado
Cordiais Saudações
Comunico ao prezado amigo que estou a seu dispor para o que for necessário, nesta hora que estamos atravessando. Caso seja necessário formar corpos auxiliares, e o amigo tiver essa incumbência, pode contar comigo, pois em 1930 eu já fiz parte de um criado pela Prefeitura de Passo Fundo.
Sendo o que se me oferece de momento, subscrevo-me mui atenciosamente. Seu amigo,
ASSIS SILVEIRA PACHECO”

No dia 1º de setembro o prefeito Benoni Rosado divulgou a seguinte

“MENSAGEM AOS PASSO-FUNDENSES

Dirijo-me a todos os passo-fundenses, homens e mulheres da cidade, das vilas, dos campos e da colônia, nesta hora de grande preocupação, para dizer-lhes que tenham a maior e mais absoluta confiança e tranqüilidade na ação das autoridades constituídas do nosso Município.
A ordem, a disciplina e o respeito serão mantidos inflexivelmente. Estamos atentos a tudo, acompanhando o desenvolvimento e o desenrolar dos acontecimentos, amplamente conscientes dos nossos deveres e responsabilidades.
Confio em todos os passo-fundenses, desde o mais humilde àquele que ocupa posição de destaque na vida econômica, social e política de Passo Fundo.
Aqui estou na Prefeitura Municipal, dia e noite, em contato permanente com os nobres oficiais e soldados do 20º Regimento do Exército e do 3º Regimento da gloriosa Brigada Militar, no cumprimento do meu dever, zelando pela tranqüilidade da família passo-fundense e pelo respeito à Carta Magna de todos os brasileiros.
Devemos estar atentos, vigilantes, permanentemente vigilantes na defesa da Constituição e da liberdade sagrada do nosso povo.
Essa posição de ordem, de disciplina, de respeito e de vigilância é que tomou o povo ordeiro de Passo Fundo ao nosso lado.
Estou presente em tudo, passo-fundenses, podeis ter a mais absoluta certeza. O vosso Prefeito não desmerecerá da vossa confiança. Na defesa do regime democrático, da nossa liberdade, e pela posse do Presidente Constitucional do Brasil, Dr. João Goulart.
GABINETE DO PREFEITO, em 1º de janeiro de 1961.
BENONI ROSADO – Prefeito”

PASSAGEM DE TROPAS

A 4 de setembro noticiava-se que 3 mil pessoas se propunham espontaneamente, em Cruz Alta, a defender a Legalidade. Em Passo Fundo, homens e mulheres, em grande número se apresentavam como voluntários nos quartéis do I/20 RC (Exército) e do 2º BP (Brigada Militar).
Entre 1h e 5h do domingo (3 de setembro) cruzaram pela Avenida Brasil, atravessando a cidade, em direção a Vacaria e Lages, sob o aplauso da população que saiu às ruas, em plena madrugada, cerca de 2.500 homens pertencentes ao 6º RAM, de Cruz Alta. Os combatentes eram comandados por um coronel. Iam em ônibus “Pullmann”, caminhões, ônibus comuns e viaturas do Exército. Durante o dia cortaram a cidade, cinco composições ferroviárias, com homens do 17º RC de Santiago. Eram um Regimento de Cavalaria, um Corpo de Artilharia, uma Companhia de Comunicações e elementos do Hospital Militar, sob o comando do capitão Victor José Linder. Este capitão informou que todo o Quartel do 17º RC, sob o comando do general Oromar Osório, totalizando cerca de 1.200 homens (só de Santiago) estava em Marcha.
No dia 4 de setembro as tropas do III Exército já alcançavam Santa Catarina, segundo declaração do general Cordeiro de Farias, “comandante legal do III Exército”, e eram enviadas tropas do Exército, Marinha e Aeronáutica para atacarem os legionários que marchavam do Sul.
Nessa mesma data, mais tropas do 6º RAM, de Cruz Alta, ao passarem por Passo Fundo, confirmavam que quase 3 mil pessoas se alistaram voluntariamente naquela cidade.
As mulheres passo-fundenses, através da Cruz Vermelha e do Comitê Pró Legalidade e outras entidades do mesmo gênero mobilizavam a população que se alistava em massa como voluntários.
Nesse mesmo dia a maioria das tropas que marcharam para o Norte já e encontravam em solo catarinense. Enquanto isso, tropas do I Exército (Rio de Janeiro) e do II Exército (São Paulo), também entravam em Santa Catarina. As cidades de Joinvile, Blumenau e Laguna (abrangendo o Litoral) se constituíam em teatro de estacionamento de tropas, o que causava preocupação aos moradores.
Milhares de homens já haviam passado por Passo Fundo, rumando a vários pontos de Santa Catarina. Dentre eles figurava “o disciplinado e valoroso 4º Regimento de Cavalaria sediado em Santiago, nesse Estado”. O grosso da tropa está em Santa Catarina tendo ontem chegado aqui, via rodoviária, um esquadrão. Seus Componentes estacionaram nesta cidade, sendo ovacionados pelo povo, alojando-se no Quartel do I/20 Regimento de Cavalaria”, na definição de O NACIONAL.
Oficiais do 4º Regimento de Cavalaria de Santiago informaram que esta é a última turma do regimento que transita por Passo Fundo. É um esquadrão de Comando, que tem à frente o major Gilson Castro Correa de Sá, constituído de cem homens, sendo 9 oficiais e 91 praças. Os oficiais que integram a turma de militares que se acham em Passo Fundo, são os seguintes: major de cavalaria Gilson Castro Correa e Sá (comandante), major de cavalaria Francisco Torres Nogueira da Gama, capitão de cavalaria Humberto França da Costa, primeiro tenente de cavalaria Evaldo Lima Moraes, primeiro tenente de cavalaria Nilo da Silva Macedo, segundo tenente Dante Vilson Alves Pereira; primeiro tenente Mus Edmar Glória Ribeiro; segundo tenente de cavalaria Raimundo Nonato de Carvalho Melo e segundo tenente José Maria Gadelha Caetano.

APOIO EFETIVO

No domingo (3 de setembro) mais de mil pacotes, com frutas, doces, sanduíches e toda sorte de guloseimas, organizados pelos comitês da Legalidade e o Diretório Acadêmico Carlos Gomes, do Instituto de Belas Artes. Entre o grande número de voluntárias foram anotados os seguintes nomes: Ivone Pacheco, Tereza Almeida, Suely Santos, Adelina Vargas, Neusa Castro, Jalila Assis e a presidente do Diretório Acadêmico Carlos Gomes, Estelita Maris Marcondes.
Coordenaram a coleta de donativos: Flávia Menna Barreto, Maria Teresa Rache, Teresinha Amaral, Maria Quadros, Ezilda Santos, Ilda Amaral, Erbene Fachini, Rosa Santos, Olga Poleto, Alice Costi, Licínia Couto, Zamar Goson, Dinah Portela e Elda Castro.
No dia 6, diante da posse de Jango, a cidade voltava ao normal. Jango anunciava a convocação de um plebiscito para decidir o futuro da emenda parlamentarista. Os professores e os fotógrafos passo-fundenses manifestaram apoio à Legalidade e contestaram o parlamentarismo. Encontrei registrados os seguintes nomes de fotógrafos: Deoclides Czamanski, Durval de Barros, Juventino da Silva, Aureoleste Sanches, Nadir Minozzo, Paulo O. Lopes, Isaac Linetzki, Ruy Mattos de Souza, Aparício de Moura, José A. Pedrotti, Jack Dinkhuisen, Atílio Ortiz, Walter Rezende, Celeste Tapes Sanches, Sidnei Garcez de Souza, Oscar Borges Vieira, Sílvio Borges Vieira e Vilson dos Santos, em nota datada de 2 de setembro.
Ainda nesse dia, era organizado o movimento “Voluntários da Legalidade”, com dezenas de homens atuantes na comunidade para defender a Ordem contra o golpe dos aproveitadores, numa clara alusão à emenda parlamentarista. Transcrevo, a seguir, o manifesto e os nomes dos signatários, que pude identificar:
“Os gaúchos pertencentes a este movimento, têm por finalidade colaborar em todo o sentido junto ao Comando da Legalidade desta Cidade. Darão integral apoio para a manutenção da Ordem e defesa contra o golpe dos aproveitadores que, por ventura, venham perturbar a tranqüilidade das famílias passo-fundenses.
Estribam-se na força moral desta luta cívica, com coragem e, resolutos nesse momento em que o Rio Grande do Sul convoca os seus filhos para mais uma arrancada gloriosa em defesa da Democracia e da Constituição. Aqui estão para cerrar fileiras, honrados em pertencer a esta terra de Fagundes dos Reis, descendentes de um povo que jamais soube apanhar “cheirando tala de mango”. Honram no presente e honrarão no futuro o nobre legado dos nossos antepassados, os heróis desta Província de São Pedro, cuja tradição não se apaga em nossos corações, assim como os ‘guarda-fogo’ dos galpões rio-grandenses não se apagarão nunca. Lutam, e preciso for em qualquer chão, defendendo a liberdade de nossa gente e a sagrada CARTA MAGNA da República dos Estados Unidos do Brasil.
‘Avante, seguiremos em favor da ordem e da Legalidade!’
Os componentes do Movimento são os seguintes: Noleis de Carvalho – Casado – 34 anos – Contabilista – Reserv. – Ed. Bancário, apto. 8; Valdomiro Lemos de Morais – Casado – 37 anos – Marceneiro – Av. Brasil, 2553; Belmiro Gonçalves da Silva – Solteiro – Reservista do Palácio do Governo; Valdomiro Três – Casado – 33 anos – Reserv. - Rua Cel. Chicuta, s/nº; Leopoldo Azambuja Dutra – Casado 38 anos – Pedreiro – Lava-Pés, 2800; Eduardo Cardoso – Casado – 40 anos – Escariolista – Av. Presidente Vargas, 158-A; Ervino Jass – Casado – Sapateiro – Reserv. – Av. Brasil – Boqueirão; Waldemar Delfino – Casado – 32 anos – Pedreiro – Av. Brasil – Boqueirão; Henrique P. Garbin – Casado – 27 anos – Rádio-Téc. – Rua Miguel Vargas, 318 – V. Independente; Mansueto Basegio – Casado – 32 anos – Oper. – Rua Miguel Vargas, 286 – V. Independente; Zeno Horn – Casado – 28 anos – Motorista – Rua Miguel Vargas – V. Independente; José F. Almeida – Casado – 26 anos – Motorista – Rua Frederico Graeff – V. Independente; Ivo Fernandes – Casado – 26 anos – Motorista – Rua Frederico Graeff – V. Independente; (seguem-se vários nomes que faltam no original rasgado) Edgar Riambau Gomes – Enfermeiro – Av. Brasil, 724; Honorato Didoné – Casado – 48 anos – Comércio – Av. Brasil, 712: Adalberto Costa – Casado – 27 anos – Pedreiro – Rua Uruguai, 1939; Ernesto Marcelino Dias – Casado – 56 anos – Comércio – Av. Brasil, 800; João Bernardo Conceição – Casado 31 anos – Rua Independência, 923; Francisco W. Urdangarin – Casado – Func. Pub. – Rua Independência, 923; João Meira – Casado – 66 anos – Rua 15 de Novembro, 940; Dorvalino Rosa – Solt. – 20 anos – Sapateiro – Av. Brasil, 808; Gilberto Antunes Lemos – Casado – 23 anos – CEEE – Rua Diogo de Oliveira – Boqueirão; Leonel Trelha – 27 anos – Pedreiro – Av. Brasil – Churrascaria Ávila – Boqueirão; Rômulo Antão Bastos Almeida – Casado – 46 anos – Comércio – Rua Teixeira Soares, 1136; Ernesto Locatelli – Casado – Comércio – Av. Brasil, 450; Antonio C. dos Santos – Casado – 32 anos – Aux. Escrit. – Rua Eduardo de Brito, 1603; Atair de Matos – Casado – 31 anos – Comércio – Reserv. – Rua Gal. Canabarro – Apto. 2; Meirelles Duarte – Solt. – Contabilista – Rua Teixeira Soares, 717; Neuto Patusi – Casado – 31 anos – Comércio – Rua Moron, 1230; Gomercindo Dal Cul – casado – 38 anos – Comércio – Av. Gal. Neto, 459; Aquiles Baggio – Casado – 33 anos – Comércio – Rua Bento Gonçalves, 670; Orides dos Santos – Casado – 42 anos – Carpinteiro – Rua Cel. Miranda, 187; Manuel Praudelino G. da Silva – Casado – 55 anos – Escariolista – Telef. A/C Pedro Peres; Nelson machado – Casado – 36 anos – Motorista-Mec.; Anaurelino Machado – Casado 0 48 anos – Rua Independência, 441.”

O FIM DA CAMPANHA DA LEGALIDADE

No dia 6 de setembro o general Oromar Osório chegou a Passo Fundo. Acompanhavam-no seu ajudante de ordens, capitão José Luiz Amado Noronha, capitão Edson Cunha Ilha e 2º tenente Cândido Silva, do Quartel General daquela Divisão do Exército. Aqui, no I/20 RC, estavam estacionados cerca de 100 homens esperando a chegada do seu comandante.
Com a situação resolvida sem que fosse necessário confronto armado entre as “tropas beligerantes”, os comandantes vitoriosos foram solenemente festejados pela mais fina sociedade passo-fundense.
À noite os comandantes do 4º RC e do I/20 RC receberam homenagens do Rotary Club Passo Fundo, presidido pelo juiz de Direito Eurípides Fachini, e do presidente do Clube Comercial, Arthur Lângaro.
Estiveram presentes os oficiais de Santiago: general Oromar Osório, comandante da 1ª Divisão de Cavalaria; majores: Gilson de Castro Correa de Sá, comandante do 4º Regimento de Cavalaria, Waldir Cruz Soares (da 1ª DC), Joaquim Cruz Soares Batista Pereira (da 1ª DC), Waldo Prates Bento Pereira (da 1ª DC), Francisco Torres Nogueira da Gama (4º RC), capitães: José Luiz Amado Noronha (ajudante de ordens do general Osório), Humberto Peçanha de Costa (4º RC), Jairo Antonio Machado (1ª Cia. de Comunicações), Edson Cunha Ilha (do Quartel General da 1ª DC), primeiros tenentes: João Hipólito Ribeiro Machado (do QG da 1ª DC), Iunes Constantino (da 1ª Cia. de Comunicações), Paulo Dornelles da Silva (Cia. de Comunicações), Nilo Macedo (11ª. Cia. de Comunicações), Yapir Marotta (11ª Cia de Comunicações), Evaldo Lima Morais (4º RC), segundo tenentes: Breno Claro de Oliveira (11ª Cia. de Comunicações), Caetano Luiz Gadelha (4º RC); Raimundo Mello (4º RC) e Cândido Silva (QG da 1ª Divisão de Cavalaria.
Também receberam homenagem os seguintes oficiais do I Esquadrão de Cavalaria, sediado em Passo Fundo: capitão Carlos Ely Garcia (comandante), capitão Dr. Mário Lopes Pereira; capitão Oscar Soares Alves; primeiro tenente Luiz Carlos Pereira da Silva; primeiro tenente Antonio Carlos de Mello e Souza; primeiro tenente Telmo Luiz Tuzzi; primeiro tenente Carlos Edmundo Kraemer; primeiro tenente Joaquim Gomes; segundo tenente Luiz Carlos Bittencourt e segundo tenente Afonso Correa de Araújo.
Os convidados foram saudados por Ney Vaz da Silva, conhecido empresário local. Na seqüência o general Oromar Osório agradeceu a homenagem.
Em nota oficial, assinada pelo capitão Jairo Antonio Machado, comandante da 11ª Cia. de Comunicações, os militares de Santiago agradeceram o povo de Passo Fundo, especialmente à Cruz Vermelha, na pessoa da senhora Djanira Lângaro, a todas as pessoas que colaboraram, destacando o apoio dos ferroviários.

O RETRONO DOS COMBATENTES

No dia 10 de setembro as tropas de Cruz Alta, que, como vimos antes, fizeram a vanguarda dos militares que se deslocaram, ora, segundo algumas informações até o interior de Santa Catarina; ora, conforme outras até a fronteira do Rio Grande do Sul com aquele Estado passaram por Passo Fundo rumo a Cruz Alta. Uma era a Companhia do Quartel General do Exército, 17º RI, sob o comando do coronel Adolpho João de Paula Afonso. Essa Companhia aqui chegou às 17 horas, do domingo, 10 de setembro, e tinha ido até a divisa com Santa Catarina, estacionando em Vacaria, onde aguardava ordens do III Exército.
Os registros também são contraditórios. Ora se assegura que vinha comandada pelo Capitão Frederico Kurtz, ficando alojada nos galpões do CTG “Lalau Miranda” e do CTG “Getúlio Vargas”, sendo assistida pela Cruz Vermelha e pela Prefeitura. Retornou no dia 11, pela manhã, de ônibus e caminhão, a Cruz Alta; ora que era comandada pelo coronel Adolpho.
Ao todo, cruzaram por Passo Fundo 1.600 homens do 17º RI, de Cruz Alta, 400 homens do 6º Regimento de Artilharia Auto-Rebocada, também de Cruz Alta. É de supor-se, que o coronel Adolpho João de Paula Afonso fosse o comandante de todas essas tropas e que o Capitão Frederico Kurtz chefiasse os 400 artilheiros.

CUSTOS DA CAMPANHA

Dia 12 eram divulgados dados calculando os prejuízos dos acontecimentos cívico-militares em 8 bilhões de cruzeiros, para a economia nacional Campanha da Legalidade para a economia nacional. A economia local também sofreu bastante. Os frigoríficos Z.D. Costi & Cia. Ltda. e Indústrias Planaltina deixaram de receber suínos, pois os criadores destinaram a produção para indústrias localizadas em municípios onde não ocorreram mobilizações de tropas.
Seguiram-se notas de agradecimento, tanto do prefeito trabalhista Benoni Rosado, quando de entidades representativas da comunidade, onde era destacada a participação passo-fundense, mormente das mulheres, em prol da legalidade.
Enquanto crescia a mobilização pró e contra o sistema parlamentarista, congressualmente implantado. A alegria da vitória da Legalidade foi quebrada por acidentes, tanto rodoviários quanto ferroviários, inclusive com mortes, envolvendo as forças que se movimentaram para defender a posse do substituto legal do presidente demissionário. Por essas notícias sabemos que, junto com os militares de Cruz Alta e Santiago, também seguiram civis.

OS AGRADECIMENTOS

Concluída a Campanha da Legalidade registramos os agradecimentos de duas instituições envolvidas com o movimento desde seus primeiros instantes: a Prefeitura e o 2º Batalhão Policial, atual 3º/1º RPmon.

“Prefeitura Municipal de Passo Fundo

Ao Povo Passo-Fundense

Superados os acontecimentos que eclodiram com a renúncia presidencial e a posse do Presidente Constitucional, Dr. João Goulart, retornamos às nossas tarefas comuns, à paz e à tranqüilidade.
Externamos o nosso reconhecimento a todos, que de uma forma ou de outra, livremente tomaram posição na defesa da Constituição e da sagrada liberdade do Povo Brasileiro.
Aos Comandos do 2º Batalhão Policial da Brigada Militar; do 1/20º Regimento de Cavalaria do III Exército; aos seus oficiais, sargentos e praças; ao Poder Legislativo; à imprensa escrita e falada; à Cruz Vermelha; aos servidores do Município; aos Comitês de Defesa da legalidade; aos operários; aos estudantes; aos Escoteiros; às Associações Beneficentes; às Instituições Religiosas; às Entidades de Classe; a todo o povo de Passo Fundo, o nosso apreço pela atitude assumida, dentro da ordem e da disciplina, da vigilante defesa dos preceitos constitucionais.
Aos que, espontaneamente se impuseram sacrifícios de ordem material, de ordem pessoal; aos que permaneceram em vigília e aos que se dispuseram ao sacrifício, a nossa gratidão e a certeza de que as tradições de glória do Rio Grande mais uma vez reviveram nas páginas da história da nossa Pátria.
À mulher passo-fundense, o nosso mais profundo agradecimento pela cooperação, dedicação e estímulo nos dias de preocupação que vivemos.
Ao Governador Eng.º Leonel de Moura Brizola, a nossa admiração e as nossas homenagens.
Finalmente, à tua conduta, Passo-Fundense, o nosso muito obrigado.
Que Deus permita aos nossos Governantes alcançar a felicidade que desejamos a todo o Povo Brasileiro.
GABINETE DO PREFEITO, EM 9 DE SETEMBRO DE 1961.
BENONI ROSADO – Prefeito”

Eis o documento publicado pelo 2º Batalhão Policial, o 3º/1º RPmon, de hoje:

“2º Batalhão Policial

AGRADECIMENTO

PASSADOS os dias tumultuosos da crise político-militar que abalou a nação, repercutindo intensamente nesta cidade, cumprimos o indeclinável e honroso dever de cumprimentar e agradecer ao povo de Passo Fundo, que por seu alto espírito cívico, acendrado patriotismo, educação e generosidade permitiu e facilitou, sobremaneira, a manutenção da ordem pública e a garantia das instituições.
Agradecemos e cumprimentamos o Ex.mº Sr. Prefeito Municipal – professor Benoni Rosado, cuja atitude valorosa e decidida, à frente de seus munícipes, foi, sem dúvida, o protótipo de um líder digno do seu povo e a expressão mais lídima da Legalidade Constitucional de sua terra. Dinamizando meios, orientando a previsão e o emprego dos recursos, proporcionou a sua cidade as condições indispensáveis a sua defesa ante qualquer perigo que sobreviesse.
Agradecemos da mesma forma, esse jovem e humanitário médico passo-fundense Dr. Tobias Wainstein que na hora mais crucial, quando parecia iminente a eclosão, pôs-se à disposição deste Batalhão, pronto a acompanhá-lo em qualquer missão. Gesto da alta significação, pois contem as mais belas virtudes de civismo, coragem, desprendimento, abnegação, caridade e devotamento à causa do povo, à causa da Legalidade. Gesto que se há de gravar de forma indelével no Histórico da Unidade para todo sempre. Obrigado Dr. Tobias.
Ao eminente desembargador Dr. Reysoli José dos Santos e aos ilustres Drs. Eurípides Fachini, César Santos, Mário Lopes, Odaglas Salgado, Mário Lopes, Avelino Andreis, Sr. Edson Giavarina. Ao insigne presidente da Câmara de Vereadores Centenário do Amaral e a todos os vereadores. À Sua Exa. Rev.mª D. Cláudio Colling, ao Ver. Pastor da Igreja Metodista desta cidade, Sr. Otto Gustavo Otto – a nossa gratidão pelo apoio e colaboração que dispensaram à nossa Unidade. Aos prestimosos funcionários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, Srs. Waldemar Laporta Machado, inspetor do Movimento, Erne Alípio Michel, inspetor do Tráfego, Dib A. Abelin, inspetor das Linhas Telegráficas, Oscar Cunha Costa, chefe do Depósito, Dr. Prado Lima, presidente – que proporcionaram o recompletamento da rede de informações que estabelecemos em toda a Zona Norte do Estado – o nosso agradecimento.
Aos presidentes da FUPE, amigo e colega Rui Centeno Xavier; da UPE o valoroso jovem Paulo Roberto Pires, pela colaboração, solidariedade e confiança e pela forma com que orientaram e conduziram a exaltação cívica dos nossos concidadãos e jovens estudantes.
Á prestigiosa imprensa escrita e falada de Passo Fundo, pela sua colaboração preciosa às Forças Armadas.
Aos Comandantes e Subcomandantes do I/20 RC Cap. Garcia e 1º Ten. Luis Carlos e seus oficiais e praças, que como nós viveram dias aziagos e que, conosco, ombro a ombro, estiveram apostos pela causa da Legalidade – o mais fraternal agradecimento.
Aos oficiais e praças da reserva que como um só homem, acorreram ao nosso Quartel prontos para qualquer missão – o nosso reconhecimento.
Á ilustre dama D. Djanira Lângaro e sua Cruz Vermelha Brasileira, filial de Passo Fundo – os nossos cumprimentos pela sua benemerente colaboração à causa da Legalidade.
E, por fim, a DEUS que, mais uma vez, preservou nossos lares de uma desdita, não permitindo que sua perene felicidade fosse mutilada, conduzindo os homens à razão, para que se estabelece o bem geral, a ordem legal e a Democracia cristã – a nossa prece sincera e nossa gratidão mais eterna.
FRANCISCO SAMUEL JOFFRE TOMATIS – Tem. Cel. Comandante”

3. À GUISA DE CONCLUSÃO

Baptista Pereira, em Directizes de Ruy Barbosa (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932, págs. 40 e 41), após historiar o descaso a que as forças armadas brasileiras eram reduzidas afirmava que
“Entregam-se nossas classes armadas ao regime do descalabro. A política contamina com o seu vírus a disciplina e inverte a hierarquia militar, virando da cabeça para os pés a ordem dos postos”.
Concluía que essa prática levava à caudilhagem militar e à insegurança constitucional, nestes termos:
“O Brasil não pode continuar com esse regime, que era o da Cisplatina dos Oribes, Lavallejas e Riveras. A defesa nacional precisa ter um conselho diretor e permanente, em que não possam intervir os ministros das pastas militares senão a título de colaboração, seja qual for o partido triunfante, seja qual for o presidente da República ou o chefe do Estado, seja qual for o regime. República, Ditadura ou Monarquia, o Brasil precisa saber que a sua segurança interna tem uma guarda ativa, permanente e vigilante, acima de todos os interesses de ocasião”.
Esse gaúcho, genro de Rui, que tanto enfrentou a caudilhagem do seu tempo sabia muito bem do que falava.
Ao contrário do que afirma uma grande corrente de historiadores, o brasileiro não tem nada de cordial. A História do Brasil, desde os primeiros anos da ocupação portuguesa, é uma sucessão de rebeliões, revoltas internas e lutas externas contra a Coroa Espanhola e seus sucessores.
Paulo Mercadante ao longo do seu já clássico Militares e Civis: A Ética e o Compromisso (Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978) demonstra que a elite brasileira formou-se sob a lógica da Contra-Reforma, contrária a toda e qualquer mudança profunda na sociedade. Assim, sempre optou por aquilo que muitos estudiosos chamam de modernização conservadora, sintetizada no famoso “fazer a revolução antes que o povo faça”.
Sérgio Buarque de Holanda, na 7ª Edição de outra obra clássica (Rio de Janeiro: Raízes do Brasil, 1973, págs. 119 e 120), assim define esse fenômeno:
“É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso da nossa evolução política, vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência ou hostilidade. Não emanaram de uma predisposição espiritual e emotiva particular, de uma concepção da vida bem definida e específica, que tivesse chegado à maturidade plena. Os campões das novas idéias esqueceram-se, com freqüência, de que as formas de vida nem sempre são expressões do arbítrio pessoal, não se “fazem” ou “desfazem” por decreto. A célebre carta de Aristides Lobo sobre o 15 de Novembro é documento flagrante do imprevisto que representou para nós, a despeito de toda a propaganda, de toda a popularidade entre os moços das academias, a realização da idéia republicana. “Por ora – dizia o célebre paredro do novo regime – por ora a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”.
“Bestializados, atônito, surpresos”, todos, povo e elite, receberam a notícia de que o presidente Jânio da Silva Quadros renunciara ao mandato no dia 25 de agosto de 1961. Os únicos que não se surpreenderam integravam uma organização militar nazifascista, facilmente identificável pelos antecedentes biográficos dos militares golpistas, a começar pelos seus “arianíssimos” sobrenomes.
Essa presença de golpes militares é uma constante na história brasileira, como o demonstram estudos que se tornaram referência obrigatória como Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro, de Raymundo Faoro. E fazem parte da manutenção do status quo e do patrimonialismo, a privatização ou apropriação do Estado por grupos privados, partidários e familiares, que nos vem desde os primeiros anos da Colônia, com as Capitanias Hereditárias. Os golpes militares, pois, inserem-se na política de conciliação de classe, como momentos privilegiados em que é preciso reprimir qualquer ameaça mais profunda ao estatus quo, do qual são partes inseparáveis a modernização conservadora e o patrimonialismo. A esses golpes militares, numa subversão da própria palavra, as classes dominantes costumam dar o nome de “revolução”.
O patrimonialismo leva à mistura entre o público e o privado. O cofre do detentor do cargo público, civil ou militar, e o cofre da repartição, empresa pública ou de economia mista por ele administrada passam a ser uma única e mesma coisa. A corrupção se generaliza. O custo de uma eleição, que deveria ser bancada com o dinheiro do próprio candidato, acaba sendo coberto com o erário público. A coisa se torna mais escancarada nos governos de “coalizão”. Aqui vale ainda mais o axioma de Joaquim Francisco de Assis Brasil: “Governo de vencedores e vencidos é infecundado quando não calamitoso”. Os partidos políticos acabam reduzidos a simples bandos organizados para saquearem os cofres públicos.
Nosso poeta Inharandú Chaves, à época dos acontecimentos, listou três causas da renúncia de Jânio Quadros: “pressão dos trustes, aliada a outras razões: Lacerda e seus embustes, chantagens, imposições... (...) um câncer no olho doente!?!?!? (...) um ‘pileque eloquente’.
Autores diversos listaram diversas razões. Numa entrevista concedida ao extinto jornal O Pasquim (Rio de Janeiro: ENTREVISTAS POLÍTICAS DE O PASQUIM, Editora Codecri Ltda., 1978, págs. 86 a 98). Após afirmar que foi tentado a fechar o Congresso Nacional, respondendo a uma pergunta de Ziraldo, assim justifica a sua renúncia:
“Há instantes em que é preciso tomar uma decisão. As pontas do meu dilema eram: fecho o Congresso ou me deixo cair de joelhos. No momento em que caio de joelhos desapareceu a autoridade que o povo me emprestou! Lá sigo eu para a velha política das capitanias e dos feudos: devo entregar o Ministério da Fazenda um grupo, o Ministério da Agricultura para outro, O IBC para um terceiro, o Ministério da Viação para um quarto, o Ministério do Trabalho para um quinto... Assim eu me acomodo e governo cinco anos. (em tom de comício). Saio daqui com a pior de todas as imagens, porque então sim terei frustrado todas as minhas ideias reformistas e todas as esperanças que o povo depositou num governo limpo, corajoso, independente e honrado! Governo sério! Governo que não furta e não deixa furtar! Governo no qual não entra congressista ou homem influente no Banco do Brasil exceto pelos seus méritos Eu era um homem tranquilo em todos os setores. Tinha como ministro de Minas e Energia esse grande paraibano que é João Agripino. No Ministério do Exterior eu tinha o Afonso Arinos de Melo Franco. Tinha Clemente Mariani no Ministério da Fazenda. Estava cercado de homens como Brigído Tinoco, Castro Neves...”
Jânio, com clareza meridiana, explica as razões de suas brigas com o Congresso Nacional (espaço onde historicamente se reúnem os diversos estamentos patrimonialistas e suas personalidades mais representativas). Daí a sua famosa resposta para a renúncia: “Fi-lo porque quis” e não “Fi-lo porque qui-lo”, como se popularizou.
O movimento que ficou conhecido como “Campanha da Legalidade” rompeu com aquela tradição dos movimentos reformadores partirem de cima para baixo, como escreveu Sérgio Buarque de Holanda. Leonel Brizola, filho dos camponeses pobres do 4º distrito de Passo Fundo, subverteu a ordem histórica estabelecida pelas classes dominantes.
Diante do “movimento reformar de baixo para cima”, que se espalhava a partir do Rio Grande do Sul, os “estamentos patrimonialistas”, através do Congresso Nacional, optaram por permitir a posse de João Goulart, sob um sistema parlamentarista de governo. O vice-presidente aceitou a proposta. Brizola discordou do seu companheiro de partido e cunhado. Ou oito ou oitenta. Essa história de meio presidente era inaceitável. Que a Brigada Militar e o III Exército marchassem contra Brasília garantindo, a ferro e fogo, o respeito à Constituição. Vinte e oito anos depois, Almino Affonso (às paginas 48 e 49 e nove do seu livro) assim refletiu sobre o assunto:
“Durante muito tempo, considerei que se João Goulart houvesse recusado a “conciliação” (que na verdade foi um esbulho) as tropas do III Exército e da Brigada Militar teriam marchado sobre Brasília, sob o comando do general Machado Lopes. Se isto houvesse ocorrido, outro teria sido o desenrolar de nossa história... O país, naquele momento, respaldava majoritariamente a ascensão de Jango. Os golpistas (militares e civis) teriam sido marginalizados. Poderia o novo Governo, respaldado pelo povo e pelas armas vitoriosas, haver convocado a Assembléia Nacional Constituinte, sob o signo de compromissos com as reformas políticas e sociais...
De todo modo, já não estou hoje convencido de que fosse possível a marcha sobre Brasília. Depois de haver lido a obra do marechal José Machado Lopes – ‘O III Exército na Crise da Renúncia de Jânio Quadros’ (publicada em 1980) – ficou-me a impressão de que ele, uma vez instituído o sistema parlamentar de governo, não se levantaria contra a decisão soberana do Congresso Nacional. Há um tópico, em seu depoimento, que dá sustentação a esta minha hipótese:
‘Nunca aderi ao governador Leonel Brizola, nem permiti que sua influência sobre o sr. João Goulart perturbasse a solução pacífica da crise política pelo Congresso Nacional, quando lembrei o sr. João Goulart a sua palavra, empenhada na véspera, de respeitar as decisões soberanas do Congresso’ (opus cit. Pág. 52).
Mas estou caindo num exercício mais nostálgico do que político. Deixemo-lo de lado. O que fica de concreto é que, com a posse de João Goulart, superava-se a trama golpista (pelo menos o seu primeiro capítulo) que a renúncia de Jânio Quadros desencadeara. Porém, ficava uma lição que não esqueci mais: o conservadorismo, no bojo da crise, engendrou o ‘golpe branco’ e com enorme perspicácia triunfou em nome da ordem e da paz da família brasileira”.
Caso Almino Affonso tivesse lido El héroe en la historia: Um estúdio sobre la limitación y la possibilidad, de Sidney Hook (Buenos Aires: Galatea – Nueva Visión, 1958), talvez entenderia que não existe o “se” na História, mas que os heróis, de fato existem. E podemos medi-los confrontando Leonel Brizola e os milhões de homens e mulheres anônimos que ficaram ao seu lado, com anti-heróis como Jânio Quadros, Carlos Lacerda, Odylo Denys, et caterva.
A aventura militar da Campanha da Legalidade acabou em Passo Fundo no dia 6 de setembro de 1961. Nessa data, o general Oromar Osório, comandante das forças militares que, passando pela cidade três dias antes, foram estacionar umas em Marcelino Ramos, outras em Vacaria, ficou hospedado no quartel do I/20RC. Dali saiu para visitar umas autoridades, desfilar em Jeep, ao lado do prefeito trabalhista, ser homenageado pelo juiz de Direito e outras autoridades. E churrasquear.
Os “estamentos patrimonialistas”, através da “modernização conservadora”, fizeram da Campanha da Legalidade a farsa comemorada com churrasco e cerveja, que se transformaria na tragédia de 1º de abril de 1964. Invertiam a famosa máxima de Karl Marx, segundo a qual “A história se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
Daí, certa mágoa que o filho do minifundiário Benjamim Brizola guardou do seu cunhado estancieiro, João Goulart, por não lhe ter permitido marchar contra Brasília, apoiado na Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, do III Exército e das “guerrilhas” de que falou num dos seus discursos. Ali, o presidente dissolveria o Congresso Nacional, convocando uma Assembléia Nacional Constituinte, que votaria as reformas de base, dando forma à Revolução Brasileira iniciada com a união de todos os sul-rio-grandenses em 1930.