domingo, 22 de novembro de 2009

Dois Gaudérios no Rio


Da excursão promovida pela Academia Passo-Fundense de Letras ao Rio de Janeiro, em setembro de 2008, fazia parte o jovem Marcelo Bernardon, filho da professora Rejane Bernardon, e neto de Sinval Bernardon, empresário e político, do qual fui amigo, apesar da nossa diferença de idade. Talvez por isso, Marcelo me tirou para parceiro.
O seu sonho de viagem era conhecer a Lapa, a todo custo, mas conhecer no sentido de desvendar.
Hospedamo-nos num hotel do Flamengo. À noitinha, em grupo, dirigimo-nos a pé para o tradicional bairro boêmio. A maioria optou por um bar com samba ao vivo. Marcelo não gostou do ambiente.
– “Tem até homem se esfregando em homem!”, reclamou.
O que ele queria mesmo era circular pela Lapa. E lá me fui com meu novo amigo.
Montamos nosso ponto de apoio numa choparia. Era um ambiente mais convencional. Dali, saíamos em “ronds” e para ali retornávamos. Travestis tomavam conta da calçada em frente. Ostensivamente bem comportados.
Ao redor da Lapa amontoam-se grandes, ricas e até suntuosas igrejas. Apenas uns poucos batistas, perto dos sodomitas, distribuíam folhetos evangélicos. Lembrei-me de Daniel na cova dos leões.
Passamos por um bar de gays e lésbicas.
Do alto de dois metros de mulher atlética, destacava-se um vozeirão grosso.
– “Queres conhecer a Lapa... vamos entrar”, provoquei.
Não topou.
Enveredamos por uma rua apertada contra o morro. Em cada extremidade um carro da polícia militar, com dois crioulos, que mais pareciam zagueiros da seleção jamaicana. Um deles ao volante; o outro fora, em pé, com um fuzil cinematográfico. Gente de todo o tipo, de loiras falando línguas irreconhecíveis, a típicos negrões cariocas. E as mais diversas drogas que se possa imaginar. É uma zona dominada por uma autoridade invisível, que não é do Estado, um verdadeiro não-Estado. E com toda a certeza é um dos lugares mais seguros do Rio.
Já de madrugada, decidimos retornar ao hotel. Não reencontramos nossos amigos.
– “Viemos a pé, voltaremos a pé”, deliberamos.
Meio perdidos, solicitamos informações a um dos policiais sobre a direção em que ficava o Flamengo. Orientou-nos e disse:
– “Tomem um táxi. Não vão a pé, que serão assaltados”.
Conferimos a informação com alguns taxistas e recebemos o mesmo conselho:
– “Aqui vocês estão seguros. Não saiam a pé, que não escaparão de um assalto”.
Meu companheiro queria sair caminhando. Então saiamos. E nos mandamos. Entramos por uma avenida. De um lado um muro alto. E travestis na calçada. Nenhuma outra viva alma. No meio da avenida, um estreito canteiro. Do outro, um parque deserto. Passa um carrão vindo do Flamengo. Carrega um travesti. Não vimos se era algum jogador de futebol. Há pouco tempo um craque metera-se numa confusão com travestis. Pensou que eram mulheres, segundo disse.
Mais velho, orientei meu camarada:
– “Segue na frente, a uns quatro metros de mim”.
Marcelo, piazão, de jeans e camiseta. Eu, mais velho, crisalho, de calça social e paletó, camisa quase toda aberta, formávamos uma dupla antípoda.
De atrás de um monumento, no meio do canteiro, saem quatro elementos estranhos. Um deles, anão, parecia um duende evadido de uma sepultura, imundo; outro, enrolado num lençol branco, semelhava uma múmia.
– “Vamos ser assaltados”, sentenciou.
Também me amedrontei, mas não temi. Lembrei-me que Cristo costumava repetir que não se deve temer. E mais: “Resisti ao diabo e ele fugirá de vós”.
– “Te acalma, e vai no meio deles”, respondi.
Abriram-se. Passamos incólumes.
Resolvemos atravessar o parque.
De trás do arvoredo saem dois rapazes ao nosso encontro. Novo diálogo:
– “São assaltantes...”
– “Te acalma e vai no meio deles”.
Dito e feito. Abriram os dedos. Pouco adiante reconhecemos o hotel.
Chegamos.
O porteiro, um baiano já velhote, nos recebeu dizendo:
– “Os colegas dos senhores já chegaram perguntando por vocês. Não vieram de táxi?”
– “Não. Viemos da Lapa caminhando”.
– “Vocês são loucos. Ninguém sai a pé da Lapa, de noite, sem ser assaltado”.
– “Então somos os primeiros”.
E fomos dormir porque estávamos cansados de gauderiar no Rio.

Paulo Monteiro

35 ANOS DE JORNALISMO LITERÁRIO


EM 1º DE JULHO DE 1974 PUBLIQUEI MEU PRIMEIRO ARTIGO DE CRÍTICA LITERÁRIA. E NÃO PAREI MAIS. EI-LO:

“A Sogra de Josias”

Outro dia, quando entrava n’O NACIONAL, com uma convocação da “Nova Geração”, Ivaldino Tasca, que conversava com um moço de olhos vivos e bigodes negros disse-lhe, apontando-me:
– Esse rapaz, aí, é da “Nova Geração”!...
Imediatamente as cartas foram postas sobre a mesa e o redator voltou-se para mim:
– Esse moço acaba de publicar um livro e está procurando o pessoal da Academia e vocês da “Nova Geração”.
Foi assim que conheci José Calegaro, o Autor de “A Sogra de Josias”.
Logo que deixamos o Jornal, após tirarmos um bom cavaco, providenciei em apresentar o jovem escritor aos presidentes da NG e da nossa Academia de Letras.
Confesso que fiquei intrigado com o título de sua obra e sobre isso saí filosofando com meus botões. A Sogra seria de algum Josias bíblico, gentílico ou de carne e osso?
Agora, após a leitura do livro, acho que é a sogra de qualquer um de nós, ainda que do Sr. Solteiro da Silva.
Mas troquemos o saco pela mala.
José Calegaro é um moço de vinte e um anos, natural de Palmeira das Missões e estudando Medicina em nossa Faculdade, pouco conhecido nas rodas livrescas da província, como diria o velho-moço Machado, mas sabendo muito bem que “numa terra de cegos quem tem um olho é rei”. Explico-me: muita gente que nasceu aqui, viveu aqui, morreu aqui, nunca teve (ou tem) coragem de publicar seus trabalhos. É preciso que, de quando em vez, apareça algum forasteiro e publique uma obra. Aliás, creio que o último a beber no velho chafariz e dar-nos um livro foi meu amigo Benedito Hespanha e suas “Galáxias do Homem”.
Faço questão de lembrar o que disse dia 18 do mês passado, durante o lançamento em nossa cidade d”A Sogra de Josias, na Maxmar; ainda que essa obra não seja ótima (como estréia é digna de qualquer grande nome) tem um valor enorme por ser escrita por um jovem, publicando fora de sua terra, num meio que lhe é (ou era) desconhecido quase por inteiro.
Basta que olhemos à História de qualquer Literatura para constatarmos que os grandes movimentos literários e as maiores obras saíram das mãos de jovens, exceto uma “Paulo e Virgínia” e poucas outras. Autores como Wodsworth e Colerige (fundadores do Romantismo), Victor Hugo, Casimiro, Rimbaud, Marinetti, Apollinaire, Trakl, Mário de Andrade, Lorca e muitos outros, confirmam a tese.
A obra de Calegaro tem duas facetas: cotidiana e/ou social.
Como escritor do cotidiano o autor é muito menor, muito mais circunstancial, menos artista, pois arte também é técnica. Seu mérito maior é como escritor social, porque aí “exige mais trabalho”, conforme declarou no “Nova Geração – Presente!”. Se me parece falta-lhe apenas um conhecimento maior dos nossos ficcionistas sociais: Aluízio Azevedo, Domingos Olímpio, Alcides Maia, Euclides da Cunha, Raquel de Queirós, Jorge Amado, Lins do Rego, Graciliano, entre outros; um pouco mais de reflexão e visão do mundo, para a maioridade literária. Trabalhos como Ave Maria Rural, A Costureira, Negrote... E sua alma???, são obras muito boas, recomendam bem qualquer estreante.
Apenas para exemplificar duas passagens de seu livro:
“– (...) Para todo o mundo era só a costureira e nem se dizia mais, que não é preciso.
– Afinal de contas, pobre nem nome tem!”(Pág. 17).
“Lá a coisa foi bem pior: deu uma tremenda inundação e morreram milhares de cabritos, vacas, homens e galinhas”. (Pág. 57). Nessa passagem nota-se a mão do autor. A forma faz o fundo. Fundo e forma são a mesma coisa, aí...
“Há na obra literária, segundo Cândido de Oliveira, uma expressão de tendência individual e outra daquilo que o autor deve ao meio. Taine, segundo o mesmo autor, considera três fatores: raça, meio e momento como decisivos na produção de uma obra de arte literária”. “A Sogra de Josias” se identifica com esse conceito.
Uma feliz estréia a de José Calegaro, que já nasceu escritor; quando a ser um grande escritor está em suas mãos e, particularmente, como membro de um Grupo Literário, apenas almejo-lhe um bom progresso, que não fique apenas com A Sogra de Josias, mas publique outras obras. Que escreva e escreva sempre. Para o escritor, esse é o melhor exercício.

Paulo Moteiro

História do Sindicato dos Bancários de Carazinho e Região


“História do Sindicato dos Bancários de Carazinho e Região: as Três Fases” (Berthier, Passo Fundo, 2009), da historiadora Silvana Moura, conta a trajetória dos bancários carazinhenses. É uma história que começa na década de 1910, com os correspondentes bancários, que precederam a primeira agência bancária no ainda 4º distrito de Passo Fundo.
Em 31 de julho de 1952 um grupo de 58 bancários criou a Associação dos Bancários de Carazinho, transformada em Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Carazinho, em 22 de junho de 1956. Os sindicalistas da categoria, até a contra-revolução de 31 de abril de 1964, caracterizaram-se pelas práticas reformistas, muito próximo daquilo que, no jargão político, se convencionou chamar de “peleguismo”. Isto, apesar da presença de lideranças ligadas ao que viria transformar-se no Partido Comunista Brasileiro, o “Partidão”. Dois desses líderes, João Alcindo Dill Pires, hoje anistiado, e Eduardo Azambuja, falecido, foram presos e sofreram as agruras da perseguição ditatorial.
Depois do golpe contra-revolucionário seguiu-se um período em que o sindicato foi amordaçado. As coisas chegaram a tal ponto que até mesmo atas não foram lavradas, durante longos espaços.
A terceira fase começou em setembro de 1985, oportunidade em que uma pequena e combativa “célula” de funcionários do Banco do Brasil provocou o fechamento das agências bancárias de Carazinho, antes que a paralisação se efetuasse nas demais cidades da região. Um “novo sindicalismo” consolidou-se no dia 12 de março de 1986, quando a “Renovação Bancária” derrotou fragorosamente os situacionistas. A base desse movimento foram os líderes grevistas do ano anterior. É uma fase que, no entendimento de Silvana Moura, continua até hoje.
Meu contacto com “História do Sindicato dos Bancários de Carazinho e Região: as Três Fases” iniciou-se há poucos dias quando, na Conferência Municipal de Cultura, reencontrei-me com a historiadora Silvana Moura, que me entregou um exemplar do livro. Exatamente uma semana depois reencontramo-nos durante o lançamento da obra na 23ª Feira do Livro de Passo Fundo. A Autora se fazia acompanhar de um dos personagens centrais da história, José Renato Stangler, ex-presidente daquela entidade de classe, atual juiz do trabalho em Soledade.
Confessei-lhe que senti uma falha na obra: o quase nulo espaço dedicado às organizações político-partidárias que atuaram no movimento sindical carazinhense. Confessei-lhe mais: ou a Autora esqueceu por não considerar importante esse estudo ou por temor de ferir suscetibilidades locais.
Acabamos eu, a historiadora e o ex-sindicalista bancário conversando sobre aspectos particulares das lutas políticas e sociais de Carazinho. “Foi um ato falho”, resumiu Silvana, admitindo que as linhas dedicadas aos confrontos políticos e sociais naquele município poderiam ter-se estendido por algumas páginas, pelo menos.
Concluí que a Igreja Católica Romana, dominado a imprensa, e a Igreja Luterana, controlando a máquina administrativa municipal, implantaram, nos anos de 1940, uma cultura política anticomunista e, por extensão, anticontestatória, que plasmou uma sociedade civil submissa. Esse controle é de tal monta que influi até mesmo sobre as análises dos pesquisadores mais lúcidos que se dediquem a estudar a vida política e comunitária do município.
Há mais de um século e meio, em suas “Lições Sobre a Filosofia da História Universal”, o velho Hegel, já destacava as limitações e dificuldades para escrever aquilo que ele definia como “história imediata”. Desta, a história local e a micro-história, formam partes inseparáveis, onde se inscrevem livros como “História do Sindicato dos Bancários de Carazinho e Região: as Três Fases”.
A importância dos livros de história local e micro-história é inegável. Não lhes diminuem essa importância as limitações neles encontradas. O estudo desse tipo de obra é fundamental. Comprovam-no tratados que exerceram grande influência, a começar pelos grossos tomos do inconcluso “O Capital”, de Karl Marx, “discípulo” de George Hegel.
Nada é mais parecido com um livro do que a árvore. Como estas, das quais seu corpo é originário, as perfeições e imperfeições tomam a proporcionalidade do seu tamanho. “História do Sindicato dos Bancários de Carazinho e Região: as Três Fases” é um estudo vigoroso. Veio para ficar, ainda que, por enquanto, imperceptível como aquela sequóia que cresce na Praça Ernesto Tochetto, em Passo Fundo.

Paulo Monteiro

A vara e os livros


Meu pai era operário do DAER – Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem, ficando pouco tempo em casa. Morávamos na Vila Jerônimo Coelho e eu estudava na então Escola Municipal Parque e Grêmio dos Viajantes, hoje Escola Municipal PE. José de Anchieta.
Criado conservadoramente, sem envolvimento com a piazada das redondezas, mesmo porque há 35 anos, aquela parte da cidade era praticamente área rural, a ida para a escola proporcionou-me contato com um mundo novo. Uma dessas novidades foi o futebol das peladas.
Certo dia, após as aulas, demorei-me jogando futebol com a gurizada. Para minha vergonha essa aventura acabou com o aparecimento de minha mãe, portando uma bela vara de erva-de-corvo.
Tentei conversar, mas não teve argumento que servisse; apelei para as pernas, mas estas acabaram levando umas varadas, antes que conseguisse distanciar-me da fúria materna.
A partir daquele dia mudei meu comportamento. Futebol, só depois de comunicar em casa que ia jogar, onde e com quem. Para ocupar meu tempo, passei a ler os poucos livros que tínhamos em casa, a começar por uma velha edição da Bíblia.
Hoje, quando escrevo estas linhas desalinhavadas, minha mãe agoniza no Hospital São Vicente. Quando elas forem publicadas é possível que não esteja mais entre nós.
Já não tenho mais 7 anos. Tenho filhas, uma delas com essa idade, viciadas em livros, como eu. Chegam a dormir sobre eles.
Minha esposa, infelizmente para mim, não morre de amores pela leitura. Às vezes que ela reclamava perante minha mãe da minha bibliomania, Dona Crécia, com um sorriso orgulhoso, respondia prontamente: “Eu sou culpada disso. Eu e uma vara de erva-de- corvo...”
Obrigado, mamãe! Obrigado, pelas varadas que levei naquele dia!
NOTA DO AUTOR: O artigo acima foi publicado à página 8 de O CIDADÃO do dia 25 de abril de 1997. Leocrécia da Silva Monteiro, minha mãe, falecera no dia anterior, enquanto o jornal estava sendo impresso.

Paulo Monteiro

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O Riso do Fantástico


“Humor com Pimenta” (Elisabeth Souza Ferreira, com ilustrações de Diego Chimango e capa de Scheldon Souza Ferreira, Passo Fundo: Berthier, 2009) é um dos livros mais interessantes publicados em Passo Fundo nos últimos anos. A autora já publicou outras obras, mas nenhuma de “literatura fantástica”, e muito menos eivada de humor.
Álvaro Lins, um dos críticos literários brasileiros mais expressivos do Século XX, legou-nos um ensaio clássico sobre a literatura que encontra em Edgar Alan Poe seu putativo criador. Putativo criador, porque essa literatura existe desde a Antiguidade. O ensaio, intitulado “No Mundo do Romance Policial”, está entre as páginas 259 e 271 da primeira edição de “O Relógio e o Quadrante” (Editora Civilização Brasileira, Rio, 1964).
No estilo direto que o caracterizou Álvaro Lins, já nas primeiras linhas escreve com todas as letras: “O romance policial não é literatura no conceito estético da palavra”. Uma página adiante (260), assim resume o que seja esse tipo de produção literária: “Qualquer romance, quando integralmente construído, é um mundo fechado, do qual o leitor participa, durante a leitura, esquecendo a existência ordinária. O romance policial, mais do que os outros, é um mundo particular e hermético, com os seus personagens, com os seus episódios, com as suas emoções, com os seus encantos, com as suas grandezas e misérias, tudo diferente do mundo normal em que vivemos. A leitura de um romance policial é uma evasão, uma troca de realidades, é a entrada num universo de natureza anormal, do crime, apaixonando os leitores não só pelo extraordinário, mas também por uma ligação secreta com este mundo de horrores, operada na circunstância de que no homem mais virtuoso ou tímido existe a possibilidade de praticar o ato anormal do criminoso”.
O conceito que o autor “Jornal de Crítica” faz do romance policial pode-se aplicar ao conto e à novela do gênero em epígrafe e aparentados como as literaturas de terror e far-west, como de resto a toda a “literatura fantástica”.
Os nove contos de “Humor com Pimenta”, em sua maior parte, expõem o fantástico e o terror. Não o fazem, porém, com seriedade. Escritora sensível, Elisabeth Souza Ferreira, vê no sobrenatural literário uma forma de humor. E assim o vê com os olhos de quem convive com o sobrenatural por opção de fé, a mesma opção que a tornou autora de obras sobre essa temática.
Crescemos sob o medo a figuras mitológicas, desde o velhíssimo Lobisomem ao Velho do Saco ou ao Seqüestrador de Criancinhas. O Pecado é outra dessas figuras aterradoras, em que foi transformada a tradução hebraica de desobediência. O fantástico, seja policial ou terror, é a “natureza anormal” de que nos fala Álvaro Lins, elevado ao humorístico. Daí a curiosidade. Como na vida real, todos nós sabemos o final da história: o Lobisomem, o Velho do Saco, o Seqüestrador de Criancinhas e assemelhados não nos pegarão.
A pimenta, que Elisabeth acrescenta ao humor, é o ridículo das personagens, como vemos em todas as personagens que aparecem ao longo dos nove histórias que compõe o livro. O conto “A Maldição da Cadeira” é ilustrativo. Irritado com o dono do bar, Chico, o bêbado, lança uma maldição sobre a cadeira da qual foi enxotado. E funciona. Como nos velhos dramalhões mexicanos, começa a mortandade de tantos quantos sentem nela. E para que a humanidade não acabe exterminada, a cadeira acaba encontrando o amaldiçoador que termina “vítima da própria maldição”.
A “natureza anormal” é também o absurdo, absurdo presente nos mitos ancestrais e contemporâneos. A fusão entre o humor e o ridículo mostra a absurdeza do fantástico. Não é à-toa que o vômito está presente no conto “Sacolas e Sacolões”, onde a absurdidade chega ao extremo. As pessoas fumam num ônibus urbano. Um menino carrega um engradado de refrigerantes. Usa o líquido de uma garrafa, limpando o rosto do motorista ferido com uma pedrada. Aparece até um gaúcho usando gravata (e não um lenço). Em “No Escritório”, outro conto de inegável absurdez, mais uma cena de vômito. E por não vomitar, a avó de “A Mesa” “cai dura no chão”, morta, após ingerir a urina envenenada do gatinho da empregada, pensado que fosse suco de laranja.
A presença de personagens sem nomes próprios é uma constante ao longo dos nove contos de “Humor com Pimenta”. A despersonalização é outra demonstração do absurdo, que é uma realidade cada vez mias constatável com a concentração das pessoas nas cidades. Ao antepor o adjetivo ao substantivo, como ocorre na maioria das vezes em que essas palavras se encontram, a Autora continua demonstrando que a pessoa, representada pelo substantivo, é secundária.
“O romance policial (e toda a literatura fantástica, sou eu quem o diz, dialogando com Álvaro Lins) não é literatura no conceito estético desta palavra”, e não o é porque “Aquele problema da criação poética através do estilo nunca foi inteiramente resolvido pelos seus autores; e não o será nunca, talvez”. Ao apimentar o fantástico, Elisabete Souza Ferreira, produz o absurdo. E isso é a radicalização da “natureza anormal”, expressa através das personagens. Na prática e absurdidade do absurdo. Aí está a resolução do “problema estético”, introduzindo o fantástico na literatura esteticamente literária, “talvez”, mestre Álvaro Lins.

Paulo Monteiro

ECONOMIA, POLÍTICA E LITERATURA


As ligações entre economia, política e literatura apresentam muito mais pontos de encontro do que se imagina. É o que se viu e ouviu nos diversos debates ocorridos durante a 13ª Jornada Nacional de Literatura, concluída há poucas horas. Tive, durante o evento, a oportunidade de encontrar exemplos práticos desse vínculo. Seja durante as manhãs acompanhando os imortais brasileiros que participaram do 3º Encontro da Academia Brasileira de Letras – Revisitando os Clássicos III; seja à tarde, nas diversas entrevistas que gravei para o programa Literatura Local, que é uma parceria entre a Academia Passo-Fundense de Letras e a TV Câmara; seja, ainda, em conversa direta com escritores.
Um dos exemplos mais paradigmáticos, encontrados durante a Jornada, é do livro MINHA TRAJETÓRIA, que tem o sugestivo e nada enigmático subtítulo UM VENDEDOR NO MUNDO DOS NEGÓCIOS E DA POLÍTICA, de Moacir Volpato. Em 199 páginas autobiográficas, o Autor traça a história de sua vida, desde 16 de janeiro de 1948, quando nasceu no interior de Herval d’Oeste, Estado de Santa Catarina, filho de um pequeno agricultor e oleiro, até hoje, data em que é pré-candidato ao governo do Estado do Rio Grande do Sul, pelos Democratas.
A pequena agricultura contribuiu para a ascensão econômica dos imigrantes europeus que se estabeleceram no Sul do Brasil, não de per si, mas ao associar-se com a manufatura e o comércio. Os estudiosos de nossa colonização, como todos os historiadores imediatos ou locais, sofrem de cegueira histórica, produzida e demonstrável fisicamente, pela proximidade com o objeto de análise. As autobiografias, em muitos aspectos são muito mais esclarecedoras que as volumosas e intragáveis monografias e dissertações acadêmicas. Escritas com o coração e a passionalidade acabam retratando melhor o “ruach”, o sopro primordial dos indivíduos e das sociedades, do que obras que pretendem gravar a história.
As autobiografias confirmam a velha afirmativa do autor de “A Riqueza das Nações”: “Um homem que emprega muitos operários enriquece; o que emprega muitos serviçais empobrece”. “MINHA TRAJETÓRIA”, apenas vem confirmar a exatidão do ensinamento de Adam Smith.
Homem destituído de instrução formal, Vergílio Mateus Volpato, pai do Autor, era um instintivo genial. Em outras palavras tinha uma inteligência inata, comprovando a máxima atribuída ao Barão de Itararé: “Diploma não encontra orelha de ninguém”. Planejava o que faria, discutindo consigo mesmo, como visto em certas passagens de sua vida. O filho herdou esse tirocínio, que lapidou, em cursos, conversas e viagens ao longo do tempo. Com isso montou uma rede com mais de 60 lojas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. E procura encurtar orelhas, com palestras e, agora, com o livro.
O primeiro ensinamento é o destemor, a decisão, como exemplifica, em várias passagens da obra; o segundo e não menos importante, adquirir a confiança do cliente, não mentido e tratando a todos com seriedade e respeito. E, ao longo do livro, vão sendo apresentadas pequenas receitas sobre o assunto.
Moacir Volpato sempre teve envolvimento social. Não o diz, mas deve ser um aprendizado que vem da infância, acompanhando a vida nas pequenas comunidades de origem italiana. As discussões partidárias que ali presenciou contribuíram para interessá-lo pela chamada vida pública, já em Ciríaco, apoiando um seu funcionário que se elegeu vereador, já em Lagoa Vermelha, cidade onde está a sede das Lojas Volpato, já como pré-candidato ao governo do Estado.
Economia, política e literatura é o que “MINHA TRAJETÓRIA” transpira. E o transpira como um manifesto político. Um vendedor que deu certo no mundo dos negócios dá certo no mundo da política, é o que leio, com os olhos da crítica, no subtítulo do seu livro. Os dados que apresenta sobre os oito anos em que administrou Lagoa Vermelha, zerando a mortalidade infantil que era de 23 por ano, entre outros, comprovam minha leitura. Bem escrito e sóbrio, o tom coloquial contribui para uma agradável leitura. É também a obra de “um vendedor no mundo da literatura”. E um vendedor que convence, ao oferecer suas idéias de maneira agradável, sem o tom grandiloqüente dos velhos manifestos políticos. Valeu a leitura. (Na fotografia aparece Moacir Volpato entre Paulo Monteiro e Sara Adalía, jovem integrante do movimento Poetas del Mundo).