domingo, 22 de novembro de 2009

Dois Gaudérios no Rio


Da excursão promovida pela Academia Passo-Fundense de Letras ao Rio de Janeiro, em setembro de 2008, fazia parte o jovem Marcelo Bernardon, filho da professora Rejane Bernardon, e neto de Sinval Bernardon, empresário e político, do qual fui amigo, apesar da nossa diferença de idade. Talvez por isso, Marcelo me tirou para parceiro.
O seu sonho de viagem era conhecer a Lapa, a todo custo, mas conhecer no sentido de desvendar.
Hospedamo-nos num hotel do Flamengo. À noitinha, em grupo, dirigimo-nos a pé para o tradicional bairro boêmio. A maioria optou por um bar com samba ao vivo. Marcelo não gostou do ambiente.
– “Tem até homem se esfregando em homem!”, reclamou.
O que ele queria mesmo era circular pela Lapa. E lá me fui com meu novo amigo.
Montamos nosso ponto de apoio numa choparia. Era um ambiente mais convencional. Dali, saíamos em “ronds” e para ali retornávamos. Travestis tomavam conta da calçada em frente. Ostensivamente bem comportados.
Ao redor da Lapa amontoam-se grandes, ricas e até suntuosas igrejas. Apenas uns poucos batistas, perto dos sodomitas, distribuíam folhetos evangélicos. Lembrei-me de Daniel na cova dos leões.
Passamos por um bar de gays e lésbicas.
Do alto de dois metros de mulher atlética, destacava-se um vozeirão grosso.
– “Queres conhecer a Lapa... vamos entrar”, provoquei.
Não topou.
Enveredamos por uma rua apertada contra o morro. Em cada extremidade um carro da polícia militar, com dois crioulos, que mais pareciam zagueiros da seleção jamaicana. Um deles ao volante; o outro fora, em pé, com um fuzil cinematográfico. Gente de todo o tipo, de loiras falando línguas irreconhecíveis, a típicos negrões cariocas. E as mais diversas drogas que se possa imaginar. É uma zona dominada por uma autoridade invisível, que não é do Estado, um verdadeiro não-Estado. E com toda a certeza é um dos lugares mais seguros do Rio.
Já de madrugada, decidimos retornar ao hotel. Não reencontramos nossos amigos.
– “Viemos a pé, voltaremos a pé”, deliberamos.
Meio perdidos, solicitamos informações a um dos policiais sobre a direção em que ficava o Flamengo. Orientou-nos e disse:
– “Tomem um táxi. Não vão a pé, que serão assaltados”.
Conferimos a informação com alguns taxistas e recebemos o mesmo conselho:
– “Aqui vocês estão seguros. Não saiam a pé, que não escaparão de um assalto”.
Meu companheiro queria sair caminhando. Então saiamos. E nos mandamos. Entramos por uma avenida. De um lado um muro alto. E travestis na calçada. Nenhuma outra viva alma. No meio da avenida, um estreito canteiro. Do outro, um parque deserto. Passa um carrão vindo do Flamengo. Carrega um travesti. Não vimos se era algum jogador de futebol. Há pouco tempo um craque metera-se numa confusão com travestis. Pensou que eram mulheres, segundo disse.
Mais velho, orientei meu camarada:
– “Segue na frente, a uns quatro metros de mim”.
Marcelo, piazão, de jeans e camiseta. Eu, mais velho, crisalho, de calça social e paletó, camisa quase toda aberta, formávamos uma dupla antípoda.
De atrás de um monumento, no meio do canteiro, saem quatro elementos estranhos. Um deles, anão, parecia um duende evadido de uma sepultura, imundo; outro, enrolado num lençol branco, semelhava uma múmia.
– “Vamos ser assaltados”, sentenciou.
Também me amedrontei, mas não temi. Lembrei-me que Cristo costumava repetir que não se deve temer. E mais: “Resisti ao diabo e ele fugirá de vós”.
– “Te acalma, e vai no meio deles”, respondi.
Abriram-se. Passamos incólumes.
Resolvemos atravessar o parque.
De trás do arvoredo saem dois rapazes ao nosso encontro. Novo diálogo:
– “São assaltantes...”
– “Te acalma e vai no meio deles”.
Dito e feito. Abriram os dedos. Pouco adiante reconhecemos o hotel.
Chegamos.
O porteiro, um baiano já velhote, nos recebeu dizendo:
– “Os colegas dos senhores já chegaram perguntando por vocês. Não vieram de táxi?”
– “Não. Viemos da Lapa caminhando”.
– “Vocês são loucos. Ninguém sai a pé da Lapa, de noite, sem ser assaltado”.
– “Então somos os primeiros”.
E fomos dormir porque estávamos cansados de gauderiar no Rio.

Paulo Monteiro

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