domingo, 9 de outubro de 2011

As tropas de mulas

Paulo Monteiro

Pedro Ari Veríssimo da Fonseca é autor do livro Tropeiros de mula: a ocupação do espaço, a dilatação das fronteiras, obra fundamental para o entendimento do tropeirismo. Alguns autores acadêmicos, como João Vicente Ribas em A representação cultural gauchesca no município de Passo Fundo, se opõe, com justa razão, no meu entendimento, a confusão do serrano rio-grandense do sul ao gaúcho ou à substituição do primeiro tipo humano pelo segundo. Veríssimo da Fonseca é, porém, o primeiro a salientar as diferenças, para ficar apenas em solo rio-grandense do sul, entre o serrano (biriva), o missioneiro e o fronteiriço, descendente do gaúcho ancestral. Ao preservar a memória dos últimos tropeiros, Pedro Ari Veríssimo da Fonseca prestou um serviço inestimável à História e à Sociologia do Rio Grande do Sul.
Hoje, neste ano da graça de 2008, ao percorrermos menos de 30 quilômetros reclamamos de alguns buracos no asfalto, da falta de sinalização, do acostamento mal conservado. Era a distância máxima percorrida em um dia de caminhada pelas tropas de mulas cargueiras, segundo clássicos que escreveram sobre o assunto. Imaginemos o que era palmilhar essas quatro léguas (26,4 quilômetros), nos tempos pretéritos, em lombos de burros de cangalha, cada um deles carregando dez arrobas de carga, em terrenos íngremes. E as estradas daquela época eram de chão batido, conhecidas como picadas, com pedras apontando no meio.
Os tropeiros, que construíram as primeiras cidades dos planaltos de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, foram os homens que abriram as estradas do Sul. Geralmente eram caminhos usados pelos avôs e bisavôs índios desses mamelucos, descendentes de antigos bandeirantes, “preadores de índios e prenhadores de índias”, para usar uma expressão consagrada pelo uso de muitos.
Mulas e burros, na verdade o termo correto é mulos, são produtos do cruzamento da égua com o jumento, mais conhecido como burro incho. Burro inchó é o aportuguesamento do espanhol “burro echor”, o jumento usado para “fazer” burrinhos. Daí “hechor”, fazedor, para ser mais exato na língua de Camões. Menos falado, mas igualmente presente nas tropas era o bardoto, híbrido do bagual com a jumenta. Mais aproveitado como burro de cangalha ou burro de carga, por apresentar mais as características físicas do pai. Verdade que já foi apresentada por Charles Darwin na sua quase sesquicentenária Origem das Espécies, no capítulo que dedicou (VIII, nas traduções baseadas na edição príncipe; IX, nas que seguem a quarta edição inglesa).
Burros e mulas de cangalha, como já ficou dito, percorriam uma média de três a quatro léguas por dia, transportando entre oito e dez arrobas. Isto quer dizer que a carga de um desses animais variava entre 120 a 150 quilogramas. Eram lotes entre sete e onze bestas. Às vezes, para vencer caminhos mais perigosos ou locais onde ocorriam ataques dos índios, como no Mato Castelhano e no Mato Português, juntavam-se vários grupos sob a liderança de um tropeiro mais experiente ou corajoso.
É possível que esse “vaqueano” mantivesse alguma ligação com os índios. É o caso de José Domingos Nunes de Oliveira, no Mato Castelhano. Reconhecido pelo pala branco, os caingangues deixavam passar livremente as topas nas quais ele ia como madrinheiro. Aliás, madrinheiro é aquele que montava a égua ou mula madrinha. Muitas vezes era uma burra, com arreios vistosos, e um tilintante cincerro (sineta) ao pescoço.
As tropas viajavam em duas etapas. Logo ao clarear do dia, fazendo uma longa parada para o almoço e o descanso dos animais, e uma segunda mais perto do entardecer. Nos pousos, nome que se dava aos locais de parada, os fardos eram descarregados, ordenadamente. As bestas recebiam cincerros e eram soltas no pasto. Os lugares onde as cargas ficavam depositadas recebiam o nome de “suadouros”, pois ali o suor dos animais, depositado sob os cargueiros, secava. Assim, acostumavam-se ao bimbalhar do cincerro e a seguir a madrinha.
Nas primeiras noites, os animais que formavam uma tropa de cargueiros ficavam na corda. Depois de acostumados ao grupo e sem risco de que retornassem à querência é que ficavam num potreiro, geralmente um rincão costeado por rios ou mato. Era comum que nesses locais fossem construídas taipas de pedras para a contenção dos animais.
Antes e adiante de todos seguia o cozinheiro. Levava o feijão cozido, na noite anterior. Era esquentado no local do almoço, dando origem ao famoso “feijão tropeiro”. O arroz, descascado no pilão, cozido junto com guisado de charque, hoje conhecido como “arroz de carreteiro”, era outro dos alimentos peculiares dos tropeiros. Muitas vezes uma boa carne de animal silvestre contribuía para uma lauta refeição. Não se perdia nadada, tanto que as cores preta e branca do feijão e do arroz, deram o nome de carijó à mistura de todas as sobras. É, para surpresa de alguns doutores de linhas tortas, um prato típico da cozinha passo-fundense.
Estudos etnográficos demonstram que os alimentos variavam de acordo com o que era produzido nas regiões por onde as tropas passavam. Aqui, consumia-se a farinha de mandioca; ali, onde o solo não favorecia o plantio daquele tubérculo, empregava-se a farinha de milho. Neste último caso, o cuscuz acompanhava o café. Nos últimos tempos, pesquisadores têm traçado um mapa da alimentação tropeira.
O tropeirismo fez surgirem muitas fortunas. Tropeiros, como João da Silva Machado, agraciado com o título de Barão de Antonina, foram elevados à nobreza imperial. O Império afagou o ego desses novos ricos – e muito oportunistamente a influência de alguns tropeiros pondo em prática o “dividir para reinar”.
Acontece que à medida que enriqueciam, os tropeiros deixavam de viajar com suas tropas. Seguiam atrás delas, aproveitando para bem relacionarem-se com autoridades e outras pessoas de condição social mais elevada. Alguns deles iam à Corte, fato que aproveitavam para ostentar importância por onde passavam.
No retorno de centros maiores traziam encomendas, especialmente, panos finos e jóias. Alguns deles montavam casas de comércio, em suas cidades de origem, tornando-se “capitalistas”, como se dizia à época, elogiosamente. E até banqueiros, recebendo em guarda dinheiro das pessoas com que se relacionavam ao longo dos caminhos.
Hábeis condutores de tropas levavam para Sorocaba e municípios adjacentes os híbridos comprados nas Missões, na Fronteira Oeste e na Mesopotâmia Argentina. Do planalto paulista, após um período de invernação, em que recobravam as forças e eram amansados, divididos em tropilhas, os muares eram negociados em lugares distantes, num semicírculo que ia do Rio de Janeiro a Mato Grosso.
Os animais com maior saúde, fortaleza e resistência destinavam-se ao transporte de cargas. Eram os mais procurados. Aqueles que apresentassem mais beleza de formas, para usar expressões clássicas de Pandiá Calógeras, eram destinados à montaria.
Escrevi acima que as mulas cargueiras perfaziam um percurso diário que mediava de três a quatro léguas diárias. Se não levassem cargas, também eram conhecidas como tropas montadas e as marchas diárias variavam de seis a sete léguas. Distância fácil de calcular sabendo-se que uma légua corresponde a 6.600 metros lineares.
Para que se faça idéia das dificuldades enfrentadas pelos tropeiros vou resumir o relatório de uma tropeada, concluído por Reinaldo Silveira, em Ponta Grossa, no dia 19 de novembro de 1891.
Ele saiu de Ponta Grossa no dia 21 de julho daquele ano, vindo por Chapecó e Nonoai, chegando a Cruz Alta no dia 20 de agosto. Ali permaneceu até 15 de setembro, visitando parentes e acertando a compra de 550 bestas, vindas da Fronteira, em julho, acompanhadas de algumas mulas que serviriam como vaqueanas e uma égua madrinha. No dia seguinte pousou no Jacuí; a 17 pernoitou em Cruzinha, seguindo pela manhã de 18 para pousar em Carazinho. Nessa noite aconteceu o primeiro extravio de mulada. Ali chegou e permaneceu abaixo de chuva e frio até 21, quando deixou um peão procurando um burro perdido. Ao entardecer do dia seguinte atravessou Passo Fundo, indo pousar no rio do mesmo nome. No dia seguinte caminhou uma légua, deu sal à mulada e permaneceu um dia tratando de um peão ferido em serviço.
Somente no dia 25 de setembro atravessou a picada do Mato Castelhano, perdendo duas bestas, extraviadas. Devido à chuva, permaneceu no Mato Castelhano até 27, viajando até o Passo da Taipa. No Mato Castelhano enfrentou novo estouro da mulada, dispersando-se “duzentas e tantas bestas”, que foram reunidas por um tropeiro conhecido como Juca Chato, que se incorporou ao patrão no dia seguinte. Enfrentando chuva, frio e rios transbordantes, somente chegaria ao Rio Pelotas, a 18 de outubro, porque era impossível atravessá-lo. Labutou 10 horas até ao por-do-sol para vadear o rio, deixando 19 bestas perdidas em solo gaúcho.
Bom, para encurtar essa história, Reinaldo chegou a Ponta Grossa no dia 19 de novembro. Se não falham meus cálculos, levou 65 dias de Cruz Alta à cidade paranaense. Isso com uma “tropa montada”. Imaginem se fosse uma “tropa cargueira”... E quantos dias mais demoraria até Sorocaba?
Segundo seu filho, o poeta Ribas Silveira, que preservou o Relatório de Viagem de seu pai, Reinaldo M. Silveira Loureiro, em seu livro Odisséia do Tropeirismo, foram 56 jornadas para atingir Ponta Grossa. As mulas foram compradas à razão de 60$000 por cabeça, o Estado extorquiu-lhe 2.969$000 e perderam-se 22 mulas, mortas ou extraviadas. E tem mais: a maioria dos peões eram bugres, o que quer dizer, índios caingangues.
Portanto, contrariando os cálculos dos estudiosos do tropeirismo, uma tropa de “mulas montadas”, isto é, sem cargueiros, ao menos entre o Planalto Gaúcho e o Planalto Paranaense, nos meses de inverno e primavera, percorria pouco mais de duas léguas por dia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário