domingo, 9 de outubro de 2011

O gaúcho: os bons, os maus e os feios

Conheço Setembrino Dal Bosco há vários anos. Bancário de profissão e sindicalista por responsabilidade social é respeitado pela clareza de pensamento, amadurecido em largas leituras. Nos debates, ouve atentamente e quando intervém é para marcar posição.
Assim, distingo as idéias dele e com elas me identifico, em nossa luta comum contra as potestades humanas que transformam a Terra num vale de lágrimas de sangue.
Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo, com a dissertação intitulada “Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul {1780/1889}: capatazes, peões e cativos”, totalizando 181 páginas em formato A4, onde apresenta um dos mais profundos estudos que conheço sobre a formação histórica (econômica, humana e política) do nosso Estado. Mesmo inédito em letra de forma o estudo de Setembrino, já é referência em trabalhos de outros pesquisadores, aquém e além do Mampituba.
Ali disseca o pensamento de homens como Severino de Sá Brito, Guilhermino César, João Borges Fortes, João Cezimbra Jaques, Moisés Vellinho e Carlos Reverbel, para ficar apenas entre aqueles que se tornaram “canônicos”, em termos da sócio-gênese rio-grandense, como costumava escrever Antonio Carlos Machado.
Publicar este artigo do historiador Setembrino Dal Bosco em meu blog, mais do que compartilhar um escrito excelente, é cumprir com a finalidade expressa no próprio sentido literal de O Fio da Letra.
Paulo Monteiro


O gaúcho: os bons, os maus e os feios.

Setembrino Dal Bosco*

“O mais infeliz gaúcho
tinha tropa de uma cor;
não faltava a paz do amor
e andava bem animado,
via apenas céu e gado
se olhava o campo ao redor.”

Resumo:

Nos relatos dos viajantes que estiveram em territórios sulinos no século 19 – Auguste Saint-Hilaire, Nicolau Dreys, A. Baguet, Joseph Hörmeyer e Arsène Isabelle –, a descrição do gaúcho não corresponde com o personagem atual materializado no Rio Grande do Sul. O bom gaúcho, honrado, valente, bravo, hospitaleiro, responsável, trabalhador, sóbrio, ordeiro, patriótico etc., é antagônico ao gaúcho histórico. No Plata, o gaucho real - errante e vago dos pampas da Argentina, Paraguai, Uruguai e do Rio Grande do Sul, sem chefe, sem leis, ladrão de gado, contrabandista, etc., era considerado pela sociedade colonial como a escória degenerada e irrecuperável. O presente artigo reconstruirá o perfil do gaúcho rio-grandense a partir dos viajantes citados.

Palavras chaves: gaúcho real e romântico, Rio Grande do Sul, fazendas pastoris.






















* Setembrino Dal Bosco, 44, Historiador.



Introdução
Na região platina, um personagem polêmico ocupa lugar de destaque na historiografia sul-rio-grandense contemporânea: o gaúcho. Em geral, a biografia argentina dedicou mais atenção do que a rio-grandense a esse protagonista histórico . De consenso historiográfico, apenas a sua origem: o gaúcho teria se formado do nativo destribalizado, desgarrado, do contato do europeu com o indígena e vagueava pelos campos platinos.
Na obra póstuma de Félix de Azara, publicada por seu sobrinho Agustín de Azara em 1847, o militar espanhol que esteve na região do Prata em 1784, menciona que “os trabalhadores do campo, chamados peães, cavaleiros, gaúchos, camiluchos e gaudérios, gauchos e changadores são a ralé do Rio da Prata e Brasil”.
A antropóloga estadunidense Madaline Wallis Nichols assinala, no seu livro “gaúcho: caçador de gado – cavaleiro ideal de romance”, publicado em 1946, que o gaúcho era “fundamentalmente um colono contrabandista cujo negócio era o comércio de couros de gado. Seu trabalho era grandemente ilegal; seu caráter lamentavelmente repreensível; sua posição social à margem da lei”.
A principal atividade econômica dos gaúchos era o contrabando de couros. Os couros eram entregues aos traficantes europeus e lhes rendia algum dinheiro e produtos como a aguardente, garantindo assim, sua sobrevivência e seu modo de vida.
O escritor e Jornalista Carlos Reverbel, no seu livro “O Gaúcho: aspectos de sua formação no Rio Grande do Sul e no Rio da Prata”, publicado em 1986 e reeditado em 2002, afirma que “à medida que se desenvolvia o negócio de couros, surgiu uma pacotilha, formada por indivíduos que cortavam os campos, encarregando-se de coletar couros para os traficantes europeus, em troca de artigos que estes traziam do exterior. Esses indivíduos, chamados inicialmente de changadores e, depois, de gaúchos, terminaram recebendo o apelido de gaúchos”.

Ladrão de gado
O gaúcho é descrito pelo viajante francês, Auguste Saint-Hilaire, na sua passagem pelo Rio Grande do Sul, em 1820, como um homem de má índole. De acordo com o autor, “dada à conhecida índole dos gaúchos é possível imaginar que logo proclamada a independência foram aproveitados os primeiros momentos de desordem para a pilhagem do gado das estâncias portuguesas e que estas por seu turno vingavam-se nas propriedades espanholas. [...] nada mais comum aqui que os roubos de animais. É tão banal esse gênero de furto, que chega a ser visto como cousa legítima.”
O viajante francês Arsène Isabelle, que esteve nos atuais territórios do Rio Grande do Sul nos anos de 1833, afirma que depois da guerra de ocupação “grande parte do gado roubado pelos gaúchos, durante as lutas de partido, veio a povoar as pastagens brasileiras”.
August de Saint-Hilaire propõe que o “roubo de animais devia ser uma das primeiras consequências da guerra em uma região onde só se comia carne e onde os rebanhos constituíam a principal riqueza. Na desordem da guerra estabeleceu-se tamanha confusão em Entre-Rios que o gado tornou-se quase propriedade comum ”.

Comunidade de bons caçadores e laçadores
Nicolau Dreys, em 1839, ao descrever sobre a população da Província de São Pedro do Rio grande do Sul, faz colocações à parte sobre o gaúcho. Escreve o autor: “[...] mas a província do Rio Grande oferece ainda a esse respeito uma anomalia bem digna de se notar: é a existência de uma nação mista, intercalada entre populações originárias e que pertence à raça livre [...] de uma liberdade indefinida que as leis das sociedades vizinhas podem dificilmente refrear; dizemos nação por ter essa associação excepcional, moral, costumes e gostos sui-generis; entendemos falar dos Gaúchos”.
Dreys compara a habilidade no cavalgar do gaúcho com os mestres de equitação da Europa. Escreve o viajante: “Todos os exercícios de manejo e de picaria dos mestres de equitação da Europa são familiares ao gaúcho, e alguns dos exercícios mais difíceis são mesmo entre eles divertimentos de crianças; um gaúcho nunca desce do cavalo para apanhar suas armas ou qualquer objeto que deixou cair; por um movimento rápido, ele se debruça do cavalo até a mão chegar ao chão, sem por isso retardar o andar cavalo, seja qual for a velocidade de seu passo”.
Em 1845, o viajante belga A. Baguet descreveu essa figura histórica emblemática, controversa e, atualmente, polêmica: “O guia que contratamos em São Gabriel era um verdadeiro gaúcho, um filho puro sangue dos Pampas. Tendo participado durante muitos anos de um grupo de revolucionários, vivera muito tempo somente de carne assada sem tempero, passando as noites ao relento. Como a maior parte de seus compatriotas, era de uma habilidade extrema em lançar o laço, as boleadeiras e o facão. [...] Indique a um gaúcho um animal numa tropa de duzentos a trezentos animais com chifres: ele jogará o laço nos chifres, nas patas ou em qualquer parte do corpo do animal e este será capturado” .

Cavaleiro audaz
Segundo o viajante francês Nicolau Dreys o gaúcho era um excelente cavaleiro, se identificava com o cavalo. O cavalo era sua extensão. Sentia-se um homem superior no lombo de um cavalo. A pé, era “um homem ordinário”. A habilidade no cavalgar estava, em certa medida, definida antes mesmo que o gaúcho tivesse condições de determiná-la. Segundo o mesmo depoente, ainda crianças, essa atividade era o principal meio de sobrevivência dos gaúchos.
Nicolau Dreys afirma que o gaúcho vivia e morria com o cavalo, que nunca “recusou montar qualquer cavalo” e quando o cavalo cansava, sem pestanejar o gaúcho “o larga onde se acha, e transporta seu grosseiro arnês (arreios) para o primeiro que se apresenta e que seu laço lhe submete”
Nas suas viagens pelo Rio grande do Sul, o viajante belga A. Baguet relata, em 1845, que “em uma dessas charqueadas vimos crianças de cinco a seis anos galoparem a toda velocidade, montadas em cavalos sem sela nem manta, tendo o quadrúpede por freio somente uma tira estreita apertada na boca”.
Baguet destaca, a simbiose existente entre o gaúcho e o quadrúpede, ao narrar o momento em que o gaúcho precisa descer do cavalo para finalizar seu serviço. De acordo com o autor: “Curiosos observar, enquanto isto, os esforços do cavalo, sem cavaleiro, para manter o laço esticado, apesar dos estremecimentos do animal furioso. Acrescentamos também que a inteligência do cavalo é de muita ajuda ao cavaleiro, mas é preciso que tenha sido treinado com antecedência para este tipo de exercício”.
De acordo com o viajante austríaco Joseph Hörmeyer, na sua passagem pelo Rio Grande do Sul, em 1850, o gaúcho era “criado no meio dos rebanhos e vivendo quase que exclusivamente da carne deles, o campeiro é um cavaleiro audaz, seguro e hábil, que sabe manejar de forma excelente a espada e a lança, sendo sua arma mais terrível e companheiro inseparável o laço. O campeiro não conhece outra maneira de viajar a não ser a cavalo”. Hörmeyer usa a expressão campeiro ao se referir ao gaúcho.
A maioria dos viajantes que esteve pelo território sul-rio-grandense, no século 19, refere-se aos gaúchos como um ser irresponsável, que não se apegava à família, ao trabalho, era um ladrão de gado e passava a maior parte do tempo nos bolichos, bebendo, cantarolando e jogando.

Peão de estância
O gaúcho contemporâneo idealizado e materializado no Rio Grande do Sul resulta da unificação dos modos e costumes do peão de estância, trabalhador assalariado, que vendia a sua força de trabalho ao estancieiro, com o gaúcho ladrão de gado, contrabandista, sem chefe e sem governo.
Mas quem eram os peões de estância? Auguste de Saint-Hilaire e Richard Dreys tecem comentários sobre este personagem. Saint-Hilaire afirma que os peões de estância eram, na sua grande maioria, nativos guaranis. De acordo com Saint-Hilaire: “Os estancieiros desta região, não tendo escravos (sic), aproveitam a imigração dos índios para conseguir alguns que possam servir de peões. Os guaranis são, é voz geral, muito indicados para esse serviço. Montam bem, tem prazer nisso, e muitos sabem amansar cavalos. Sua docilidade é outra qualidade que os faz procurados para empregados das estâncias”.
Nicolau Dreys assinala que a “estância é servida por um capataz, e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os peões são negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gaúchos assalariados; sua ocupação consiste em velar sobre os animais, contê-los nos limites da estância, reuni-los, guardá-los e apartá-los quando é mister.
Os nativos guaranis, comunidades de caçadores, pescadores, horticultores e coletores haviam desenvolvido, anterior a fundação da Missões Jesuíticas, a prática agrícola e cultivavam a plantação de milho, mandioca, batata-doce e abóbora. Eram excelentes cavaleiros e, nas fazendas pastoris missioneiras eram os trabalhadores das lides do campo, responsáveis pelo amansamento e vigilância dos rebanhos. A técnica do doma em campo aberto, o churrasco, a boleadeira, o laço, o poncho, o tirador etc. Foram invenções dos cavaleiros missioneiros e pampeanos
Deduz-se nos relatos dos viajantes que esses nativos, com a destruição dos sete povos em meados do século 18, acabaram se estabelecendo nas estâncias exercendo o trabalho de peão. Entre os séculos 18 e 19, imigrantes de outras províncias, sobretudo mineiros e paulistas, e estrangeiros se estabeleceram nos atuais territórios do Rio Grande do Sul, resultando num contingente significativo de mão de obra para as estâncias. Saint-Hilaire relata sobre um Alferes mineiro que formou uma fazenda na Província de São Pedro e que possuía muitos filhos que provavelmente trabalhavam na fazenda do pai como peões. Os gaúchos se empregavam esporadicamente como peões de estância, quando estavam sem dinheiro.
O contato dos imigrantes interno e externo com os peões nativos, trabalhadores escravizados e com o gaúcho nas lides campeiras aproximou costumes e modos de vida diferenciados. Os primeiros já domesticados e estabelecidos nos limites da estância. O segundo levando uma vida sem chefes, sem leis e sem polícia, mas com uma habilidade enorme em laçar, caçar, courear, cavalgar, arrebanhar, vigiar etc., permitindo a apropriação por parte dos peões das qualidades dos gaúchos.


O mito do bom gaúcho
Possivelmente, o mito do bom gaúcho tenha surgido de uma forma paralela e concomitante, acompanhando a evolução de um outro mito da historiografia sul-rio-grandense: a democracia pastoril.
Deisi Lange Albech, em “Imagens do gaúcho: história e mitificação”, publicado em 1996, assinala que, de uma maneira geral, a historiografia tradicional do Rio Grande do Sul apresenta uma sociedade homogeneizada, onde a atividade pastoril imprime traços característicos especiais ao gaúcho, de simplicidade e igualdade. Onde todos cultivam os mesmo ideais, hábitos e costumes. Em um ambiente que não tem diferenças sociais, o esforço é trabalho comum entre latifundiários e seus servidores. Gerando homens leais e corajosos, dispostos a qualquer ato de heroísmo ou bravura pelo bem comum.
No contexto do desenvolvimento da sociedade pastoril latifundiária do século 19, onde o fazendeiro, dono da estância, era, de acordo com o mito da democracia pastoril, benevolente até mesmo com seus trabalhadores escravizados, aos poucos, de uma forma lenta e gradual, o mito ideológico do bom gaúcho foi sendo construído, desconsiderando as características do gaúcho histórico, suprimindo os seus defeitos e preservando as suas qualidades.
Decretou-se a morte do gaúcho real e, de suas cinzas, como uma fênix grega, renasceu o gaúcho sul-rio-grandense idealizado – sincero, franco, bondoso, honesto, patriótico, trabalhador etc. um exemplo de dedicação ao estancieiro.

O gaúcho idealizado
Segundo o escritor e jornalista Carlos Reverbel, o “gaúcho apareceu, na sua feição primitiva, em terras do rio da Prata. E começou a esboçar-se, como tipo social, a partir de 1536, data da primeira fundação de Buenos Aires”. Apesar de existirem, de acordo com Reverbel, traços comuns entre os gaúchos que vagueavam na região platina, como “o cavalo e o boi”; “a carne assada e o mate amargo”; “o couro e o sebo”; “o luxo dos aperos e outros apetrechos de montaria”; “indumentárias de uso comum - chiripá”; “suas armas – a faca, a lança e as boleadeiras” - etc., o autor afirma que existiam naquela região três tipos de gaúchos: o argentino, o uruguaio e o rio-grandense.
Carlos Reverbel utiliza às elaborações do tradicionalista Antônio Augusto Fagundes para escrever sobre os hábitos e costumes diferenciados dos gaúchos sul-rio-grandenses, em relação aos diferentes tipos de gaúchos que vagueavam pelos campos da região platina. Fagundes faz críticas ao surgimento, no campo musical, de “imitações platenses, uniformizantes no pior sentido. E de mau gosto. [...] Errônea visão de pangauchismo, fruto de um primarismo cultural que infelizmente reveste a atuação de certos tradicionalistas entre nós”.
No mesmo sentido, o engenheiro florestal Evaldo Munõz Braz, também defendendo o bom gaúcho – defensor da pátria, destemido, honrado, bondoso, valente, franco, honesto, etc. –, que ocupava os pampas do Rio Grande do Sul, faz críticas contundentes e ataca ferozmente os historiadores que andam em busca do gaúcho real: “A versão atual dos nouveaux pesquisadores/historiadores coloca tanto os gaúchos de antanho como os posteriores à segunda metade do século XIX como homens miseráveis, solitários e tristes, com indumentárias vestidas ao acaso, bóias frias daqueles tempos [...]. Mas na verdade o principal flagelo do gaúcho tem sido os próprios pesquisadores que na busca do gaúcho histórico, procuram depreciá-lo ao máximo”.
Escorando-se no mito da democracia pastoril, a figura do bom gaúcho sul-rio-grandense começou a ser construída na literatura romântica, em 1868, tendo o jornalista e professor Apolinário Porto Alegre como um dos principais construtores desse mito. Apolinário foi um personagem atuante na literatura sul-rio-grandense do século 19. Foi poeta, contista, romancista, dramaturgo, ensaista, pesquisador, crítico literário etc., e um dos principais fundadores do Partenon Literário. O Paternon literário foi fundado em 1868 por literatos liberais, republicanos e abolicionistas de Porto Alegre, entre eles Apolinário Porto Alegre e o romancista Caldre e Fião, com o objetivo de agregar intelectuais para discutir filosofia, política, cultura e comportamento e sociedade.
Deisi Lange Albech escreve que “Apolinário, seguindo o padrão romântico de idealização do Passado, cultuou os homens livres dos primeiros tempos do território rio-grandense. Na obra Paisagens, composta por seis contos, escritos entre 1867/74, os costumes locais são representados pela identificação com o meio geográfico. No conto O Monarca das Coxilhas, 1869, é exaltada a figura do bom cavaleiro e a superioridade do homem e da vida rural”.

Sem chefes, sem lei, sem polícia
Enquanto os gaúchos da banda de cá eram enaltecidos pelos literatos sul-rio-grandenses como sinônimo de liberdade, honradez, valentia, bravura, hospitaleiros, responsáveis, honrados, violentos apenas quando “lhe pisavam no poncho”, o gaúcho da banda de lá – Argentina, Uruguai e Paraguai – eram estereotipados como selvagens, violentos, assassinos, ladrões de gado, saqueadores, mulherengos, bêbados, jogadores, irresponsáveis etc. apesar de que, na sua origem, possuíssem as mesmas características.
Os gaúchos construíram um modo de vida próprio, um grupo social que vivia “sem chefes, sem leis, sem polícia”. A desobediência dos gaúchos das normas e regulamentações vigentes, sua relutância em se estabelecer definitivamente, despertou nos estancieiros da região platina, à vontade de enquadrá-los no modelo de organização social existente.
Sobre essa realidade a historiadora argentina Maria Sáenz Quesada, no seu livro “Los estancieros: El camino de poder”, publicado em 1980, comenta: “[…] caso de auténticos gauchos que em 1819 poblaban campos fiscales em la frontera. Reacios a servir a ningún patrón. Los estancieros siempre proponían idénticos remedios para controlarlas: cierre de los establecimientos de diversión los domingos, prohibición a los gauchos de jugar a los naipes [...] control de la venta de alcohol como otra de las atribuciones del estanciero prudente.”

Os bons, os maus e os feios
Na tentativa de encontrar uma justificação plausível para diferenciar o bom gaúcho sul-rio-grandense do mau gaúcho que vagueva pelos pampas da Argentina, Uruguai e Paraguai, criou-se um processo evolutivo de gaúcho: Gaudérios, guaso, gaúcho.
De acordo com Eduardo Jorge Bosco, no seu livro “El gaúcho a través de los testemonios extranjeros”, uma compilação de testemunhos “in loco”, de diversos autores, sobre o modo de vida dos gaúchos no Plata, os gaudérios são “unos mozos nascidos em Montevideo y en los vecinos pagos. Se hacen de uma guitarrita, que aprenden a tocar muy mal, y a cantar desentonadamente [...] y pasan las semanas enteras tendidos sobre um cuero, cantando y tocando” . A nomenclatura gaudério era usada pelo escritor argentino Concolorcorvo, no seu livro “El lazarillo de ciegos caminantes desde Buenos Aires hasta Lima”, para identificar o gaúcho, em 1773.
Os guasos, conceito que passou a ser usado em 1789, eram assim descritos: ”una bota de medio pie, unas espuelas de latón, de dos a tres libras de peso, que llaman nazarenas, um calzoncillo com fleco suelto [...], una chaqueta, un sombrero redondo, de ala muy corta con un barbiquejo [...] um poncho ordinário [...] si es invierno juegan o cantan unas raras seguidilhas, desentonadas [...] com uma desacordada guitarrilla”. O guaso é relatado por Espinosa nos seus “Estudios sobre las costumbres y descripciones interessantes de la América del sur”.
A figura do pré-gaúcho exerceu importante papel na construção do mito do bom gaúcho. Madaline Wallis Nichols lembra que o conceito gaúcho era muito vago no começo. Por ser vago açambarcava todos os errantes e vagos dos pampas platinos - gaudérios, changadores, guapos, gaúcho malo, gauchos e gaúchos – sob sua guarda. Em regra, os adjetivos que acompanhavam o personagem eram depreciativos.



Gaúchos diversos e difusos
De acordo com as descrições dos personagens feitas em “EL gaúcho a través de los testimonios extranjeros” todos eram nascidos na região platina, tocavam muito mal uma guitarra, cantavam desafinadamente, caçavam gado com suas boleadeiras e lanças, comiam carne assada, dormiam ao relento, eram bons cavaleiros, usavam botas, esporas de latão, sombrero, poncho, chiripá, ganhavam dinheiro com o contrabando de couro, não tinham patrão, não trabalhavam a terra, não sabiam o que era governo, freqüentavam pulperias onde jogavam, bebiam aguardente e se divertiam com as mulheres.
No entanto, diferenciou-se cada um deles: Os bons: gaúcho sul-rio-grandense. Os maus e os feios: gaudério, guapo, gaúcho malo, gaucho etc. Em A Formação do Rio Grande do Sul, Jorge Salis Goulart utiliza-se deste expediente de diferenciação entre os gaúchos da banda de cá e da banda de lá e escreve: “O ‘gaúcho malo’ é uma criação do pampa platino. Esse tipo ‘sui generis’ que briga tão somente pelo gosto de brigar, eterno inimigo da sociedade e da justiça, guerreiro indomável e aventureiro, dominado pelo vício do jogo e pelo amor da luta cruenta, herói anônimo dos Pampas, é peculiar às populações castelhanas [...] O rio-grandense é sóbrio e ordeiro”.
O historiador Mário Maestri, reporta-se a Dreys para interpretar este personagem dos pampas sul-rio-grandense e afirma que o gaúcho portava ‘xiripá’, ‘cingidor’, ‘poncho’, ‘faca’, ‘espada’, ‘boleadeira’, ‘laço’ e ‘pistola’ – quando podia comprá-la – e que fabricava parte desses implementos”. Assinala que esse ‘nômade’, de disposições ‘taciturna e apática’, passava o tempo à ‘dançar’, ‘jogar, tocar ou escutar uma guitarra’, procurando trabalho apenas quando não tinha ‘dinheiro’” .

Todos gaúchos platinos
Apesar dos criadores do mito do bom gaúcho sul-rio-grandense terem e continuarem se esforçando ao máximo para sustentá-lo, justificando esta tentativa de diferenciação em gaúchos diversos e difusos como gaudério, guapo, gaúcho malo, gaucho etc. todos adjetivos que identificam o gaúcho da banda de lá, ou seja, o mau gaúcho, criando, inclusive, numa concepção darwinista, a existência do pré-gaúcho, não há mais espaço para negar que o gaúcho do Rio Grande do Sul era o mesmo gaúcho da região platina.
O gaúcho real morreu com o cercamento dos campos em 1870. A cerca transformou o gaúcho em invasor. O roubo do gado, que nas palavras de Saint-Hilaire era considerado como “cousa legítima” passou a ser tratado como crime de abigeato passível de condenação pela justiça. O gaúcho ultrapassava a cerca, caçava o gado e era preso e condenado.
Aos poucos, com a evolução da atividade pastoril latifundiária na região do Prata, a estância foi engolindo o gaúcho real, reduzindo seu espaço vitalício, demarcando os pampas sul-rio-grandense e platino e, o seu lugar foi tomado pelo peão de estância, que possuía algumas características dos gaúchos como agilidade no laço, bons nas lides campeiras e no cavalo mas que não era o gaúcho, pois o peão de estância aceitava de uma forma passiva e submissa a exploração da sua força de trabalho pelo latifundiário.
Acordo historiográfico há quando se trata da origem do gaúcho. Não há acordo quando se trata da possível diferenciação existente entre as características do gaúcho da região platina com o gaúcho do Rio Grande do Sul. O gaúcho era o ser errante e vago que, no lombo de um cavalo, portando apenas suas armas para caçar e se defender, campeava pelos campos da região do Prata tendo uma vastidão ao seu alcance.

















Referências bibliogárficas
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